Marcos Alan S. V. Ferreira é Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (DRI/UFPB). Doutor em Ciência Política pela UNICAMP (2010). Atuou como pesquisador visitante na Universidade de Uppsala (Suécia), Universidade de Manchester (Reino Unido) e Universidade de Vechta (Alemanha). Desenvolve suas pesquisas no âmbito dos Estudos para a Paz, com foco na violência criminal na América Latina, e também pesquisa o tema Religião e Relações Internacionais.
IDeF – Prof. Marcos, como você aborda em suas pesquisas os temas da criminalidade e da violência nos países? E que conclusões gerais são possíveis obter acerca das políticas de segurança pública desenvolvidas nesses países?
Marcos Alan – Eu abordo olhando a violência a partir dos chamados Estudos de Paz, que vê a violência não só no aspecto direto, que é a violência como conhecemos, uma violência que causa dano físico ou morte. Mas também a violência dita estrutural, essa violência que está relacionada à desigualdade social.
Por exemplo, isso fica muito patente em índices de desenvolvimento humano ou mesmo no conceito de segurança humana e nos relatórios do PNUD. Eles trazem vários elementos dessa violência que está relacionada com a desigualdade, como a falta de acesso à saúde. Meu foco ultimamente tenha sido mais o crime organizado e como que ele é ao mesmo tempo vítima desse contexto de desigualdade, como ele também reproduz essa desigualdade quando a gente olha a estrutura hierárquica desse crime. Nas pesquisas eu abordo dessa maneira, mas principalmente olhando os dados de Organismos Internacionais e de ONGs que tratam da violência. Um ator muito importante para mim nesse debate é o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O PNUD também tem algumas estatísticas, mas o UNODC é o principal. Em relação às conclusões gerais que são possíveis, isso depende muito do cenário que olhamos.
O que se nota é que a segurança pública muda muito conforme o contexto histórico de cada país, então, por exemplo, ter uma polícia militar é algo muito característico do Brasil e de alguns outros países da América Latina que passaram por ditadura militar, como é o caso do Chile. Apesar de isso não ser uma regra. De existirem países que passaram por uma ditadura mas não possuem uma polícia como a nossa, hierarquizada e munida com a ideia de garantir a ordem pública, ao invés de garantir a saúde e a integridade da população. Para a literatura, em sua grande maioria, a segurança pública no Brasil consiste em manter a ordem e a normalidade, e não necessariamente manter a integridade física do cidadão ou proteger a sociedade de pequenos crimes.
O que se nota é que a segurança pública muda muito conforme o contexto histórico de cada país, então, por exemplo, ter uma polícia militar é algo muito característico do Brasil e de alguns outros países da América Latina que passaram por ditadura militar, como é o caso do Chile.
Apesar de isso não ser uma regra. De existirem países que passaram por uma ditadura mas não possuem uma polícia como a nossa, hierarquizada e munida com a ideia de garantir a ordem pública, ao invés de garantir a saúde e a integridade da população. Para a literatura, em sua grande maioria, a segurança pública no Brasil consiste em manter a ordem e a normalidade, e não necessariamente manter a integridade física do cidadão ou proteger a sociedade de pequenos crimes. Quando se fala em “manter a ordem” mostra-se que é um instrumento de proteção do Estado mais do que de proteção da população como um todo.
Então, cada contexto muda a forma que essa segurança pública se dá em cada um dos países. Quando você vê, por exemplo, alguns países da Europa, sequer há o uso de arma letal pela polícia. Isso está muito relacionado também ao histórico de violência desses locais.
IDeF: A partir dos seus referenciais de análise, quais têm sido as principais causas da violência e da criminalidade e que políticas têm sido mais eficazes na diminuição desses índices?
Marcos Alan: Uma causa importante é a questão da desigualdade social, há vários estudos mostrando essa relação entre desigualdade social e violência, e isso quebra um pouco uma perspectiva que houve no passado de que violência está ligado à pobreza. Então não é necessariamente a pobreza que gera a violência, porque tem países que são muito pobres e o índice de violência é baixo, mas sim o índice de desigualdade.
(…) há vários estudos mostrando essa relação entre desigualdade social e violência, e isso quebra um pouco uma perspectiva que houve no passado de que violência está ligado à pobreza. (…) o transporte público chegando a algumas áreas que não chegavam, a implantação de bibliotecas ao invés de delegacias em áreas pobres, isso fez com que Medelín diminuísse bastante a violência.
Claro que existem outros fatores, por exemplo, quando a gente pega a América do Sul tem um elemento que é chave para pensar a criminalidade aqui: estamos falando de uma região do planeta que produz dois dos insumos das drogas mais importantes que são traficadas, que é a folha de coca e a folha da canabis. Então, tem elementos sociais, mas há questões geográficas e biológicas que acabam afetando. O ilícito relacionado à droga está diretamente ligado ao tipo de planta produzida na América do Sul. Em termos de políticas eficazes, infelizmente são poucos os casos, mas são aquelas que combinam não só uma abordagem de lidar com a violência criminal mas também de como que eu gero outras alternativas para a população de maneira que ela não entre na criminalidade.
Tem um caso bastante emblemático, que é muito estudado nessa discussão, que é a cidade de Medelín na Colômbia, que nos anos 1990 – depois de toda aquela violência do Pablo Escobar – tiveram várias implantações de projetos-modelo que funcionaram muito bem. Por exemplo, o transporte público chegando a algumas áreas que não chegavam, a implantação de bibliotecas ao invés de delegacias em áreas pobres, isso fez com que Medelín diminuísse bastante a violência. Embora, infelizmente, algumas dessas políticas tenham sido abandonadas, já houve um momento de ápice dessas políticas. Então, em geral, o que tem funcionado são essas ações que combinam não só a política de repressão a crimes violentos, mas também o acesso ao Estado de outras maneiras.
IDeF: Mais recentemente você tem buscado analisar em seus estudos a implementação do ODS 16 nos países (Objetivo do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas), que trata de paz, justiça e instituições eficazes e objetiva a promoção de instituições fortes e sociedades pacíficas. Como os países têm se comportado em relação ao alinhamento das suas políticas ao ODS 16? Quais têm sido os caminhos mais eficazes e as maiores dificuldades na implementação desse ODS e como os governos locais são envolvidos?
Marcos Alan – O ODS 16 é bem desafiador porque ele é muito amplo, então ele traz paz, justiça e instituições eficazes. Nesse sentido, o que significa instituições eficazes? O Estado é controlador? Instituições que são de acesso a toda a população? Bom, justiça não envolve só o poder executivo, envolve também a maneira como está organizado o sistema de justiça desses países. Diante da amplitude, eu tenho focado muito na questão da paz e mais especificamente no ODS 16.4, que é o ODS que trata da limitação do tráfico de ilícitos e de fluxos financeiros relacionados ao crime. Então eu vou falar um pouco mais desse que é o que conheço um pouco mais. Em termos de caminhos mais eficazes, o que se nota infelizmente é que não há ainda uma clareza mesmo nos indicadores do ODS 16.4. Quando ele fala de combater fluxos financeiros e o crime organizado, como é algo que acontece de maneira secreta, é mais difícil para medir o índice da diminuição ou não. Então ele é muito desafiador, em termos de políticas públicas, porque é difícil achar um grau de mensuração. Tanto que quando a gente pega aquele site “sustainable development goals tracker” e olha quais indicadores existem para cada um dos ODS, o ODS 16.4 é um dos que não tem indicador. Então isso dificulta muito como fazer políticas para ele. Ao mesmo tempo, isso tem sido área de preocupação de alguns Organismos Internacionais.
Então, em geral, o que tem funcionado são essas ações que combinam não só a política de repressão a crimes violentos, mas também o acesso ao Estado de outras maneiras.
A própria ONU tem tratado desse tema nos relatórios do UNODC e, olhando em nível regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA) também fez um plano para apoiar os objetivos e eles colocam que um dos mais críticos é o ODS 16 e cria um departamento para lidar com delinquência organizada transnacional. Atualmente, quem é o diretor dessa área da OEA é um argentino, o Gaston Schulmeister. O que é interessante dessa questão, para além de todos os problemas políticos, é a preocupação de pensar que o ODS 16.4 não te atinge a não ser a partir da cooperação internacional. Não dá só para criar uma política pública e interditar crime organizado ou fluxos financeiros, é preciso cooperar com os outros países.
A preocupação de pensar que o ODS 16.4 não te atinge a não ser a partir da cooperação internacional. Não dá só para criar uma política pública e interditar crime organizado ou fluxos financeiros, é preciso cooperar com os outros países
E isso é um desafio muito grande, porque a OEA tem tentado isso. Na América do Sul nós estávamos caminhando para uma cooperação muito interessante nesse tema, que era com a UNASUL – que tinha um conselho para lidar com o crime organizado e que estava funcionando relativamente bem, lidando principalmente com a questão do tráfico de pessoas, que é um problema na América do Sul, além de pessoas que iam trabalhar nos Estados Unidos ilegalmente e mulheres que são prostituídas em outros lugares no mundo. Mas, em razão das crises da UNASUL, paralisou-se totalmente.
Então o desafio tem sido pensar qual instituição vai catalisar isso e, em um mundo que se pensa cada vez menos em cooperação, isso gera um grande desafio. Então os próprios governos dos Estados têm sido às vezes o desafio para o ODS 16.4, especificamente porque é um ODS que não dá para lidar sem cooperação. Não tem como querer interditar um grupo como o PCC, por exemplo, que tem gente atuando no Paraguai e na Bolívia, criando uma política pública só no Brasil. E isso vale para os outros grupos também
Não tem como querer interditar um grupo como o PCC, por exemplo, que tem gente atuando no Paraguai e na Bolívia, criando uma política pública só no Brasil. E isso vale para os outros grupos também.
IDeF: De que forma a cooperação internacional, não só entre países, mas também entre cidades, pode auxiliar na promoção de sociedades inclusivas e pacíficas mitigando os efeitos do crime organizado?
Marcos Alan: Então, eu não sou especialista na cooperação entre cidades, até porque nos casos que eu analiso, que são os casos brasileiro e colombiano, a questão de política de segurança está muito restrita ou ao Estado, no caso do Brasil, ou a uma política nacional, no caso da Colômbia, mas não necessariamente envolve a cooperação entre cidades.
O que eu talvez visualizaria nessa questão é que uma cooperação entre os entes federativos do Brasil com outros países poderia ser de grande valia, até porque o Brasil, em pleno 2019, não tem um banco de dados único de segurança pública. Por exemplo, os indivíduos podem tirar seu RG por um estado e isso, em termos de segurança pública, dificulta muito. Então, para os estados brasileiros, principalmente os de zona de fronteira – e alguns deles tem um índice de homicídio muito alto, como o Acre –, diante da proximidade com os países vizinhos, a cooperação pode ser muito importante. Embora, até onde eu conheço, não existe isso tão formalizado, o que existe é a cooperação do Brasil com esses outros países para lidar com essa questão. Mas a própria estrutura de segurança pública do Brasil, por ser centralizada nos estados, talvez traga uma oportunidade de como se cooperar com os países vizinhos. Apesar de antes terem que aprender a cooperar com os outros estados brasileiros.
IDeF: Em relação ao Brasil, você poderia traçar um breve panorama sobre o problema da criminalidade e da violência nas cidades brasileiras? Quais seriam as particularidades das cidades de fronteira em relação a essa problemática?
Marcos Alan: No Brasil, até pelas suas dimensões continentais, o problema da criminalidade é muito diverso. Então, tem estados em que o índice de homicídios está abaixo do que é considerado epidêmico pela OMS, como o estado de São Paulo. E tem outros como o Rio Grande do Norte que o índice é absurdo, equivalente a zonas de guerra. O que a gente tem notado é que esses índices de criminalidade estão intimamente ligados ao choque entre facções.
(…) para os estados brasileiros, principalmente os de zona de fronteira – e alguns deles tem um índice de homicídio muito alto, como o Acre –, diante da proximidade com os países vizinhos, a cooperação pode ser muito importante. Embora, até onde eu conheço, não existe isso tão formalizado.
Quando uma facção se torna hegemônica, como é o caso do estado de São Paulo, em que o PCC praticamente domina, é natural que o índice de homicídios – falando especificamente desse índice – ele se acomode. Então ele se acomoda porque não interessa ao crime mais mortes, o que interessa é que ele faça negócios. Então uma vez que foi derrotado o inimigo, eles vão simplesmente vender ou extorquir. O que é curioso é que no Brasil nós olhamos muito para o índice de homicídios, em geral, que é o que choca mais. É um crime contra a vida. Mas a gente pega o mesmo estado de São Paulo e analisa outros crimes, como o estupro, tem tido um aumento. Ou seja, o crime de violência contra a mulher ele aumenta, enquanto o crime organizado ele se acomoda. Essas são particularidades que são importantes considerar, ou seja, o crime ele não está relacionado somente contra vida, mas também está relacionado a outros crimes violentos – como o estupro ou roubo violento. (O crime) nas cidades brasileiras depende muito das questões das facções, também de alguns valores enraizados que podem fazer com que algum outro tipo de crime aconteça em uma proporção maior. Com relação às cidades de fronteira, também remete ao que falei. Quando (a facção) se torna hegemônica, diminui a violência.
(…) em áreas de fronteira a tendência é sempre existir um choque muito grande. Porque mesmo quando (o conflito entre facções) se acomoda, como o PCC e Comando Vermelho, tem o choque por exemplo do PCC com um grupo paraguaio que trafica drogas
Só que em áreas de fronteira a tendência é sempre existir um choque muito grande. Porque mesmo quando (o conflito entre facções) se acomoda, como o PCC e Comando Vermelho, tem o choque por exemplo do PCC com um grupo paraguaio que trafica drogas – e acontece o que aconteceu em 2017, quando mais de 200 pessoas ficaram trocando tiros no meio da cidade. Então, nas áreas de fronteira, tem essa dimensão que são os grupos do outro lado da fronteira. Tem um estudo que é publicado anualmente, um mapa da violência, que tem mostrado que a grande maioria das cidades de fronteira têm índices muito altos comparados com as outras cidades de um mesmo estado. A gente observa isso no Acre, no Mato Grosso do Sul, no Paraná. Os índices em cidades de fronteira historicamente têm sido bastante altos por conta desses choques.
IDeF: Essa temática tem sido abordada em estudos de diversos pesquisadores, tanto nacional quanto internacionalmente. Na sua opinião, como que as pesquisas dentro das Instituições de Ensino Superior podem contribuir para uma governança local mais responsiva? Além disso, como as universidades poderiam auxiliar os gestores locais na implementação de medidas mais eficazes no âmbito da segurança pública?
Marcos Alan: A universidade é um espaço bastante importante para poder pensar fora da caixa. Não é função às vezes da polícia ficar produzindo conhecimento, quem produz é a universidade. Claro que (a polícia) vai produzir talvez dados de inteligência ou alguma coisa do tipo, mas não é função última.
Então é fundamental que dentro da universidade se traga alguns elementos relacionados ao crime e à segurança que não tem sido o foco da polícia e das instituições de justiça. Por exemplo, ano passado, eu e meu colega de departamento, o professor Henrique Menezes, tentamos mais contato com a polícia civil aqui da Paraíba para olhar programas como o “Paraíba Unida pela Paz”, que foi até premiado pelas Nações Unidas, e então poder colaborar com os dados de análises estatísticas. Mas tem ainda algumas barreiras nessa cooperação entre as forças de segurança e a universidade. Primeiro porque são dados sensíveis, que às vezes estão no setor de inteligência e há um trâmite burocrático na liberação desses dados. Segundo que esses dados podem ser sensíveis também do ponto de vista político, para quem está no poder. Então esse é um grande desafio.
Mas, ao mesmo tempo, essa iniciativa que tivemos no ano passado, e que não andou simplesmente por mudança de governo aqui no estado da Paraíba, embora seja do mesmo partido, mostra que existe gente dentro do setor público preocupado em fazer esse diálogo com a universidade. No evento que a gente promoveu em fevereiro (2019), quando eu fiz um seminário sobre Estudos de Paz, veio a delegada adjunta da Paraíba. Então tem tido esse diálogo, mas com certeza poderia ser muito mais intenso. Acho que as universidades têm essa capacidade de gerar conhecimento e sistematizar dados que às vezes são coletados no setor de segurança pública que se faz necessário uma análise mais apurada. Olhar, por exemplo, onde que se deve ter um foco maior ou como entender algumas dinâmicas sociais que não tem sido o foco da polícia, como a questão do feminicídio, são aspectos que a universidade pode contribuir dialogando com o setor público.
(…) é fundamental que dentro da universidade se traga alguns elementos relacionados ao crime e à segurança que não tem sido o foco da polícia e das instituições de justiça. (…) entender algumas dinâmicas sociais que não tem sido o foco da polícia, como a questão do feminicídio, são aspectos que a universidade pode contribuir dialogando com o setor público.