Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Coréia do Sul e o controle na transmissão do vírus da COVID-19

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Escrito por Jaldielle Anjos: Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba

Com quase 2 milhões de vítimas no mundo até a escrita deste artigo, a COVID-19 já é uma das piores pandemias que se tem na história e, certamente, a pior pandemia do século XXI até o momento. Muito além disso, é a prova de que o mundo não está preparado para lidar com uma problemática dessa magnitude. Dentro desse contexto, a Coréia do Sul é atualmente um dos países modelo quando se trata de uma resposta eficaz à pandemia. O país conseguiu controlar o SARS-CoV 2 quando ele já havia se espalhado pelo território nacional, deixando de ser um dos países mais afetados pelo vírus em janeiro e fevereiro de 2020 e tornando-se um país que possui, comparativamente aos demais, um baixíssimo número de casos e, consequentemente, de mortes hoje em dia.

Com base no relatório emitido pela OMS no dia 5 de janeiro de 2021, desde o início da pandemia, a Coréia do Sul registrou 63.244 casos confirmados e 962 mortes, com uma média de 19 mortes por milhão de habitantes. Ao comparar com outros países vemos uma diferença exorbitante. O Reino Unido, por exemplo, possui uma cifra de 1098 mortes por milhão de habitantes; a Alemanha, que é um modelo de combate ao coronavírus na Europa, chega a 402 mortes por milhão; e em países na América, como no Brasil e nos Estados Unidos, chegam a 919 e 1043 mortes respectivamente.

Analisando esses dados resta a dúvida: qual seria o segredo da Coréia do Sul para obter resultados tão positivos quando comparado à maioria dos países ao redor do mundo? Os principais fatores a serem mencionados são primeiramente a grande capacidade de testagem e o número de testes feitos no país. Em segundo lugar, o histórico positivo quando se trata do controle de doenças infecciosas, possuindo órgãos com autonomia para lidar de forma estratégica e científica com tais eventos, tendo como ator principal o Centro para Controle e Prevenção de Doenças da Coreia do Sul (KCDC, em inglês). Por fim, a estrutura inteligente das cidades sul-coreanas, que permitiram a operacionalização de uma estratégia de rastreamento que, sem dúvidas, foi a pedra angular das ações tomadas pelo governo, sendo uma característica singular do país, considerando suas particularidades estruturais e históricas.

Cidades Inteligentes e sustentáveis

As Cidades Inteligentes e Sustentáveis são um modelo recente de planejamento, design e infraestrutura urbana, que levam em conta o uso de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Seu principal objetivo é o desenvolvimento de cidades que conseguem ser mais eficientes e, ainda, entregar qualidade de vida para a população, abrangendo diferentes áreas: segurança, mobilidade, governança, dentre outros. Tudo isso levando em conta modelos sustentáveis que não comprometam as gerações futuras.

No caso da COVID-19, os dados gerados pelas TICs, inseridas na malha urbana das cidades, são um diferencial que pode salvar milhares de vidas. Trazendo de forma prática, Big Data, assim como câmeras, sensores, inteligência artificial, redes sociais e aplicativos de smartphones (a exemplo do próprio aplicativo do SUS) são grandes aliados. A partir de um procedimento padronizado de coleta, análise e leitura de dados, hospitais, assim como toda a estrutura da cidade, geram informações que podem ser utilizadas para o rastreamento de possíveis pessoas infectadas, para traçar padrões geográficos e, ainda, traçar o histórico de pacientes infectados no intuito de identificar e isolar pessoas com as quais eles tiveram contato.

Ao voltar-se para a Coréia do Sul, percebemos que seu modelo de Cidades Inteligentes é bem peculiar já que – diferente de cenários onde as cidades vêem a necessidade de se fortalecer como atores subnacionais, melhorando sua estrutura urbana e seu funcionamento nos mais variados âmbitos através da construção de cidades mais inteligentes e sustentáveis – a Coréia elaborou um plano nacional, liderado pelo governo federal, para ser implantado de uma forma one-size-fits-all* nas cidades do país. 

A evolução desse modelo de cidade na Coréia do Sul pode ser dividido em três grandes fases: a primeira, entre 2003 e 2013, foi marcada pelo U-City Act (sendo U de Ubíquo) focado na montagem de uma estrutura de TICs que atravessasse todo o país, com Câmeras de Circuito Fechado (CFTVs), ampliando o acesso da população a aparelhos eletrônicos, principalmente smartphones, e construindo uma rede de comunicação de alta velocidade. No período de 2014 a 2016, houve a integração dessa estrutura entre os diversos setores, como segurança e transporte, visando criar uma plataforma de dados integrada. Nesse período foi criada a Lei para Criação de Cidades Inteligentes e Promoção da Indústria, que incentivou ainda mais a construção de cidades mais inteligentes, coincidindo com a popularização do próprio termo “Cidade Inteligente”. A partir de 2017, a Coréia do Sul tem tido uma abordagem mais voltada a temas novos, como a governança e a sustentabilidade, e tem caminhado também em direção às parcerias público-privadas para o desenvolvimento de tecnologias voltadas para o propósito desse tipo de cidade. Hoje, das 87 cidades do país, 60 são consideradas inteligentes, incluindo as megalópoles do país.

A estratégia de rastreamento sul-coreana

Antes de tudo, é importante destacar um diferencial na sociedade coreana: o governo tem ampla liberdade de coletar os dados pessoais da população nesses cenários mais graves, como dados de localização, imigração, imagens de CFTVs, transações em cartões de crédito, passagens de transporte, registro de identificação pessoal e registros médicos. Esses dados são compartilhados com entidades governamentais locais e regionais, agências de seguro saúde, profissionais da área e associações.  

Assim, com a emergência da COVID-19, o KCDC lançou um sistema capaz tanto de coletar esses dados em tempo real quanto enviá-los às entidades governamentais e até para a própria população. Dessa forma, o Ministério fornece informações públicas sobre as pessoas infectadas indicando, dentre outras informações, toda a trajetória percorrida por elas num período de 14 dias. Com base nisso, é possível traçar quem corre o risco de ter contraído o vírus por ter contato com outras pessoas, direta ou indiretamente, no mesmo local. Tal sistema também automatizou o processo de coleta de dados das fontes citadas e de repasse aos atores importantes no processo, disparando inclusive mensagens em aplicativos, e até por SMS, para pessoas que corriam o risco de estarem infectadas. Tal processo, que antes levava 48h, com o auxílio das TICs foi reduzido a cerca de 10 minutos.

Com esse sistema, tecnologias inteligentes conseguem traçar a mobilidade dos cidadãos e produzir um mapa geográfico e temporal, tornando-se possível visualizar locais com maior densidade ou aglomerações, assim como locais onde pessoas infectadas passaram, e testar todos que estão nesse entorno para identificar infectados e isolá-los.

Ao analisar a estrutura das cidades sul-coreanas, vemos o seu sucesso atrelado à aderência às tecnologias, desde o início do século, com o projeto de Cidade-U. Identificando especificamente alguns fatores de sucesso: 1) A quantidade de pessoas que utilizam celulares, 2) a quantidade e a área urbana coberta por CFTVs instaladas no país e 3) o alto índice de transações cashless

Em 2019, uma pesquisa feita pelo governo identificou que cerca de 88,5% dos coreanos possuíam um smartphone. Não apenas isso, mas hoje há mais smartphones que pessoas no país. Dessa forma, há uma aderência positiva em relação aos aplicativos lançados pelo governo, assim como há uma facilidade em localizar os cidadãos a partir do GPS do smartphone, o que torna significativamente mais fácil o processo de rastreamento.

Além disso, um segundo fator é a grande cobertura de imagens de CFTVs no país. Esse é um dos principais diferenciais de cidades inteligentes quando se trata de prevenção de crimes e mobilidade, principalmente, e que se tornou muito útil na pandemia. Em 2014,  haviam cerca de 8 milhões de CFTVs no país, ou seja, uma câmera para cada 6 pessoas, onde cada indivíduo era capturado cerca de 83 vezes por dia. 

Por fim, o que não é capturado por CFTVs ou smartphones, certamente é identificado pelas transações dos indivíduos em diferentes locais, o que nos leva ao grande uso de meios de pagamentos que não envolvem dinheiro físico no país. Hoje 96,4% de todas as transações são cashless, ou seja, ocorrem a partir de cartões de crédito, débito, pré-pagos ou ainda aplicativos.

Assim, por mais que hajam diversos fatores, os quais se deve ter muita atenção e cuidado quando se trata de segurança e privacidade, os dados fornecidos por essas três fontes permitem que o sistema de rastreamento de contatos coreano forme um caminho preciso dos passos de um possível infectado e, com isso, obtêm-se resultados precisos e positivos em relação ao controle do vírus. 

Portanto, é perceptível como a estrutura das cidades sul-coreanas, que fazem amplo uso de TICs, e o incentivo para a construção de cidades cada vez mais inteligentes e sustentáveis foram fatores cruciais para entender como o país tem se destacado em meio a diversos outros países, incluindo os mais desenvolvidos e com projetos de cidades inteligentes ainda mais avançados. 

* One-size-fits-all trata-se de políticas e modelos que são aplicadas de forma igual ou bem similar em diferentes cenários.

Referências

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA CORÉIA. Instalação privada de CFTV e status de operação. 2010. Disponível:  https://www.humanrights.go.kr/site/program/board/basicboard/view?&boardtypeid=24&menuid=001004002001&boardid=600084. Acesso em 15 nov 2020.

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WALDECK, Yasmin. Smartphone usage in South Korea: Statistics & Facts. Statista, 7 jul 2020. Disponível em: https://www.statista.com/topics/5340/smartphone-usage-in-south-korea/. Acesso em 15 nov 2020. 

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