A imunização do mundo: uma geopolítica da vacinação no limite entre a soberania e a cooperação internacional

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Gabriel Monteiro Duarte Cerqueira
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais,
da Universidade Federal da Bahia

Sobre Gabriel Monteiro

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal da Bahia (PPGRI/UFBA). Graduado em Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e em Direito, pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). É Assessor de Comunicação do Semear Internacional, um programa da Organização das Nações Unidas (ONU), vinculado ao Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e implementado no Brasil pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA / OEA – Organização dos Estados Americanos).


A pandemia de COVID-19 e a busca pela imunização ao redor do mundo trouxeram à baila, uma vez mais, o debate acerca da eficácia e dos limites tanto da soberania estatal quanto da cooperação internacional. Se, por um lado, alguns países tendem a abandonar as cadeias globais de valor e a reforçar suas capacidades com vistas a uma diminuição da dependência externa, como os Estados Unidos, por outro lado, há países e organizações internacionais, a exemplo da China e da Organização Mundial da Saúde – OMS, que apostam na cooperação transfronteiriça, como estratégia não só de vacinação conjunta, mas, também, de reativação da economia. Enquanto a China buscou implementar, desde o início da pandemia, as chamadas diplomacia da máscara e diplomacia da vacina, os Estados Unidos empenharam-se para imunizar sua própria população e para recrudescer sua aptidão produtiva interna e sua autonomia diante do planeta, como na recente ordem executiva do presidente Joe Biden, de junho de 2021, para que seja revista toda a cadeia de suprimentos de semicondutores. Ao mesmo tempo, sem embargo, esses dois posicionamentos políticos não são estanques ou exclusivos e uniformes, podendo haver coexistência de decisões, dentro de um mesmo país, que representem ambas as posturas, haja vista o inédito e ainda mais atual anúncio norte-americano acerca da doação de 500 milhões de doses de vacina a países pobres e em desenvolvimento, a começar em agosto de 2021.

       De toda forma, esses dois modos de agir no cenário internacional e os contrapontos que os marcam ganham proeminência a partir das assimetrias que surgem na geopolítica da produção e da distribuição das vacinas, bem como de seus impactos políticos, econômicos, sociais e culturais. Assimetrias que, em verdade, vêm na esteira das próprias assimetrias das cadeias globais de valor, que não conseguem cumprir o seu papel de equilibrar a divisão internacional do trabalho via fragmentação especializada da produção, conforme já reconheceu a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE. Tal papel tinha como base a Teoria das Vantagens Comparativas, do economista inglês David Ricardo, cujo eixo central rezava que cada país deveria se especializar na produção de determinada mercadoria na qual ele é relativamente melhor e, em compensação, importar produtos que não produzisse ou cujo custo de fabricação fosse mais elevado. Dessa forma, para ele, haveria um jogo de soma não-zero ou ganha-ganha, em que todos alcançariam, a partir dessa complementaridade, trocas vantajosas no comércio internacional. O mesmo pensamento costumava ser aplicado, mais atualmente, às cadeias globais de valor, mas em relação à especialização das etapas do ciclo produtivo de um mesmo produto ou serviço, que vão desde o design e a pesquisa até a fase de distribuição final e outros atributos pós-venda que envolvem a agregação de valores a esse produto ou serviço. Ao contrário do que preconizava a teoria, no entanto, as desigualdades provocadas por essa rede global se mostraram cada vez mais patentes.   

       É fato, por exemplo, que as vacinas contra a COVID-19 não foram criadas a partir do marco zero, uma vez que já existiam imunizantes para outros coronavírus e que o SARS-CoV-2 já era conhecido há cerca de uma década e monitorado por cientistas. A assimetria, portanto, começa pelo potencial tecnológico, concentrado nas mãos de apenas uma dezena de países e dividido em três níveis de complexidade: vacinas que usam o RNA do vírus, como as da Pfizer-BioNTech e da Moderna, são produzidas somente por Alemanha e Estados Unidos; intermediariamente, há aquelas que manipulam adenovírus, como a Oxford AstraZeneca e a Johnson & Johnson, cuja tecnologia é acessível por Reino Unido, Suécia, Rússia, Bélgica e China; por fim, as vacinas mais simples, do ponto de vista tecnológico, são de vírus inativado, que são os casos da CoronaVac e da COVAXIN, e são criadas por laboratórios de China e Índia. Sem entrar no mérito da qualidade de cada tipo de imunizante, é importante notar que a alta seletividade e a hierarquia do acesso à tecnologia é resultado do investimento que esses países fizeram, ao longo dos anos, em pesquisa e desenvolvimento. Diante desse monopólio, os países que se tornam dependentes tendem a robustecer suas cadeias produtivas internas, com foco na segurança imunológica nacional e no recrudescimento da soberania. Outrossim, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, UNCTAD na sigla em inglês, apontou três tendências para a consolidação da nova dinâmica internacional pós-COVID-19, entre elas a rejeição do princípio do laissez-faire com a consequente adoção de estratégias mais protecionistas por parte dos Estados.

       Em contrapartida, a preocupação com o futuro ajuda a promover a cooperação, por mais difícil que seja alcançá-la sob a anarquia do sistema internacional.  Dessa forma, o esforço de controle e superação da pandemia é otimamente compatível com uma ação de cooperação internacional; afinal, considerando o mundo hodierno de fronteiras tão fluidas, ajudar a eliminar o Novo Coronavírus em outros países, ainda que represente uma parcela de não investimento direto no seu próprio território, torna-se, em última instância, uma autoproteção. Um bom exemplo de investida nessa direção é o Mecanismo COVAX Facility, pilar de vacinas do Acelerador de Ferramentas para a COVID-19 (Acelerador ACT) e colaboração global inovadora para incrementar o acesso equitativo a testes e imunizantes, coliderado pelos seguintes organismos: Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias (CEPI), Aliança Mundial para Vacinas e Imunização (GAVI), Organização Mundial da Saúde (OMS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). O Brasil, por exemplo, participante do COVAX, optou por receber 42,5 milhões de doses, a menor cota possível, correspondente a 10% da sua população – em junho de 2021, haviam sido entregues 9 milhões de doses, de acordo com o Ministério da Saúde, devendo ser recebido o restante até dezembro de 2021. 

       Individualmente, a China é o país que mais exporta vacinas, totalizando 263 milhões de doses até junho de 2021, ultrapassando de longe o esquema COVAX, e seguida da Índia, com 85 milhões de doses, conforme dados da Airfinity, consultoria britânica de análise científica. Para a China, não é interessante, economicamente, recuperar somente o seu mercado interno, pois ela depende das suas exportações e do peso das cadeias globais de valor. Ela precisa cooperar para a recuperação dos outros países, para que eles voltem a importar os produtos chineses em larga escala. As diplomacias de soft power foram as principais ferramentas utilizadas pela China com vistas a esse intento: a diplomacia da máscara, fornecendo equipamentos de proteção e segurança sanitária para vários países, desde o início da pandemia, e, ato contínuo, a diplomacia da vacina. Aliado a isso, há também um forte aspecto político, qual seja o de cuidar da reputação chinesa e da sua imagem internacional, que tem um duplo objetivo: primeiro, o de reverter a carga negativa contida na ideia de que o território chinês teria sido o celeiro do Novo Coronavírus, e segundo, o de atrair outros atores globais para a sua esfera de influência. Por este prisma de image building, poderíamos falar numa possível contribuição para a constituição de uma eventual hegemonia chinesa, em acepção gramsciana. Para o filósofo Antonio Gramsci, uma revolução hegemônica é uma estratégia de longo prazo, pautada pela lenta instauração dos alicerces sociais de uma nova ordem, como poderia ser condizente com as condutas da China. 

       É mister sublinhar, assim, frente ao exemplo chinês, que a cooperação não atende exclusivamente a interesses universais humanitários, mas, também, a interesses individuais, da própria China. Já o exemplo dos Estados Unidos da América apontava para uma tática diferente até maio de 2021, quando o país estava prestes a atingir o patamar de 492 milhões de doses de vacina, suficiente para imunizar completamente toda sua população adulta [fonte: Airfinity], e ainda continuava a manter uma política de veto a qualquer possibilidade de exportação de vacinas. Com tal conduta fortemente nacionalista, seus objetivos precípuos eram vacinar sua própria população, reativar o mercado interno e gerar emprego. Não à toa, isso ajuda a explicar a dianteira dessa nação em porcentagem de cidadãos imunizados: no final de junho de 2021, os Estados Unidos chegaram a 50% da sua população vacinada com duas doses e a 62% vacinada com pelo menos uma dose, consoante base de monitoramento da Our World in Data. Por mais que as ações norte-americanas viessem se mostrando exitosas até então, todavia, a soberania estatal não implica no isolamento dos efeitos das ações de outros Estados. Ser soberano e ser interdependente não são condições contraditórias; e afirmar que os Estados são soberanos é afirmar que eles são segmentos de uma sociedade plural. Isso talvez ajude a explicar o ponto de inflexão na política externa norte-americana em relação à geopolítica da vacinação.

       Pela primeira vez, desde o início da pandemia, apesar de serem o segundo maior fabricante de vacinas contra a COVID-19, os Estados Unidos anunciaram a doação de 20 milhões de doses da Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson, além de 60 milhões da AstraZeneca – cujo uso ainda não foi liberado pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos – que serão distribuídas em cooperação com o consórcio internacional COVAX Facility. Os imunizantes começarão a ser enviados em agosto de 2021. Alguns fatores explicam tal mudança de postura dos Estados Unidos, sendo que o primeiro deles é a tentativa de evitar um prolongamento ainda maior da crise global, uma vez que a transmissão desenfreada do vírus em países mais vulneráveis aumenta o risco de surgimento de novas variantes, mais contagiosas e mais resistentes, o que voltaria a ameaçar a segurança sanitária dos Estados Unidos. Um segundo fator é a necessidade de responder à crescente pressão internacional por uma distribuição global mais igualitária dos imunizantes e de correr atrás da China na diplomacia da vacina, buscando recuperar o tempo perdido. Ao assumir a presidência do país, Joe Biden prometeu retomar a liderança diplomática, como um contraponto ao seu antecessor, Donald Trump, que abandonou acordos multilaterais e ameaçou retirar o país da OMS, mas antes, porém, Biden precisava alcançar um ponto mais avançado na imunização doméstica, para não correr o risco de uma decisão impopular que priorizasse a política externa.

       Outra medida recente, também de junho de 2021, que ratifica essa inflexão dos Estados Unidos foi a histórica decisão de apoiar o pleito liderado por Índia e África do Sul junto à Organização Mundial do Comércio – OMC, para que o órgão recomende a dispensa dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos, insumos e vacinas usados na prevenção da COVID-19 até que a maior parte da população mundial esteja imunizada. Ainda que bem-vindo, o mais importante é perceber que tal gesto funciona muito mais como mais um passo dado na corrida da diplomacia da vacina, na qual os Estados Unidos estão atrasados, do que como uma possível benevolência para ajustar a assimetria tecnológica vacinal. Afinal, a chamada quebra de patente, caso venha a se confirmar no futuro, após longo processo de aprovação por consenso, é um ganho muito pequeno diante dos obstáculos logísticos que ainda precisariam ser vencidos para que outros países consigam, de fato, produzir suas próprias vacinas. 

       Para além da oportunidade de expandir influência global, a diplomacia da vacina acerta ainda um outro alvo com a mesma flexa, já que é vista como uma ferramenta macroeconômica que abre espaço para o comércio internacional. Não por acaso, a China, que se valeu de tal método diplomático para acelerar sua recuperação, encontra-se na liderança da produção de vacinas contra a COVID-19, mesmo enfrentando o descrédito de seus imunizantes. Para o segundo semestre de 2021, no entanto, haverá uma forte disputa por esse mercado, principalmente entre China e Estados Unidos. Enquanto a primeira acelera processos de doação e comercialização e anuncia a disponibilidade de 1 bilhão de doses para o exterior, os segundos buscam instalações em países da União Europeia para viabilizar a ampliação de sua produção, tendendo a adotar medidas mais estruturadas de fornecimento. Além disso, vacinas chinesas com novas tecnologias tendem a acirrar ainda mais a competição em mercados de média e alta renda. A estratégia da China foi a de se empenhar, incialmente, no desenvolvimento de vacinas com menor nível de complexidade tecnológica, com menos margem de erro, pois sabia que se alguma vacina chinesa apresentasse efeitos colaterais, como aconteceu com a da AstraZeneca, ela estaria fora da disputa comercial. 

       Durante a pandemia, o precário acesso à vacina, um bem escasso, converte-se em um tour de force, gerando uma mudança de arquétipos em relação a como nações, organizações e o sistema internacional funcionam e interagem. Mais de cem países sequer iniciaram a vacinação de seus cidadãos – a maioria por falta de disponibilidade até mesmo de insumos essenciais, aumentando a distância entre Norte e Sul Globais. Assim, as Relações Internacionais, mormente diante do desgaste do multilateralismo, ganham uma nova projeção, no rumo de tentar reduzir as assimetrias tecnológicas e de produção e aquisição de vacinas entre os Estados. Não obstante os impactos pandêmicos gerais já observados, também assimétricos, o impacto de longo prazo ainda está por vir, acompanhado das novas configurações econômicas e diplomáticas que se encaixam no limite entre a soberania e a cooperação. Os desafios da geopolítica da vacinação, por conseguinte, requerem reflexões transdisciplinares que possam proporcionar diálogos entre os diferentes saberes e conhecimentos de um mundo em transformação. Pensar o planeta em que vivemos sob uma perspectiva una nunca foi tão crucial: ninguém estará seguro até que todos estejam seguros.


Referências bibliográficas:

AXELROD, Robert e KEOHANE, Robert. Achieving Cooperation Under Anarchy: Strategies and Institutions. World Politics, vol.38, n.1, p.226-254, 1985.

COX, Robert. Gramsci, Hegemonia e Relações internacionais. Um Ensaio sobre o Método. In: GILL, Stephen. Gramsci: materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

HURD, Ian. The Case Against International Cooperation. International Theory. Publicado online em 16 de setembro de 2020, p.1-22, 2020.

KRASNER, Stephen. The Durability of Organized Hypocrisy. In: KALMO, Hent and SKINNER, Quentin (eds.) Sovereignty in Fragments: the past, present and future of a contested concept. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

WALTZ, Kenneth. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002.
WENDT, Alexander. Anarchy is What States Make of it: The Social Construction of Power Politics. International Organization, vol.46, n.2, p.391-425, 1992.

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