Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2005) e pós doutora no Instituto de Governo e Políticas Públicas da Universidade Autônoma de Barcelona (2017) Regina Laisner é professora assistente da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Campus de Franca, atuando no curso de graduação em Relações Internacionais, no Programa de Pós Graduação em Direito, na linha Cidadania Social e Econômica e Sistemas Normativos e como co-coordenadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas “Elza de Andrade Oliveira” (NEPPs). No NEPPs coordena vários projetos vinculados à Democracia, Participação, Direitos, Políticas Públicas, Desenvolvimento, Atuação Internacional de atores subnacionais, Internacionalização da Educação Superior e Integração Regional. Além disso, é membro do Laboratório de Pesquisas sobre Ação Pública para o Desenvolvimento Democrático (LAP2D – UNB) e da Red de Investigadores y Gestores en Internacionalización de la Educación Superior de América Latina (REDALINT).
As suas pesquisas e atividades abarcam o campo de políticas públicas e também a atuação internacional de governos locais. A senhora poderia nos dizer qual a relevância do internacional para a concretização de políticas públicas no nível local?
Primeiramente, obrigada Anna e obrigada IDeF pela oportunidade, espero poder contribuir com as reflexões e pesquisas de vocês. Eu acredito muito no conhecimento como um trabalho construído coletivamente, então acho que essas oportunidades são muito importantes e preciosas para fazer essa troca.
A questão do internacional nem sempre esteve dentro das minhas pesquisas. Na realidade, essa questão começou a fazer parte da minha vida, com maior força, a partir da minha entrada no curso de Relações Internacionais. Eu sempre fui uma estudiosa de políticas públicas, uma pesquisadora dessa área, com destaque para a questão do desenvolvimento, da pobreza e do poder local, articulada ao debate da democracia. Desde a minha graduação em Ciências Sociais quando eu ingressei na Universidade Federal de São Carlos, na minha cidade, em 1992, tive a oportunidade de iniciar minhas experiências de pesquisas no Núcleo de Pesquisa e Documentação “José Albertino Rodrigues”, que trabalhava muito fortemente com essa questão do poder local articulado à pesquisas de condições de vida. Na época, havia um projeto de pesquisa sobre condições de vida como apoio ao Comitê contra a fome e a miséria, pela cidadania e a vida da cidade, vinculado à Ação de mesmo nome coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza. Foi ali que comecei a trabalhar com todos esses temas, de forma articulada, mas ainda distante de uma perspectiva internacionalista. Quando ingressei no curso de Relações Internacionais como professora, em 2006, trouxe estes temas todos comigo e então os aliei à temática das relações internacionais. Isso me foi desafiador à época. Um fato curioso, é que antes mesmo de assumir a função na UNESP fui convidada para participar de um evento pela Orbe, a empresa júnior do curso de RI, em um seminário sobre experiências de atuação internacional de cidades. Como viram que eu era uma estudiosa do tema da democracia e das cidades, me convidaram para fazer uma fala. Foi a partir daí que vi a possibilidade de relacionar a agenda de pesquisa que eu tinha até então – cidade, poder local, democracia e políticas públicas – com RI. Meu doutoramento tinha sido recém concluído sobre Orçamento Participativo (2005) e me preparando para o seminário soube da existência das redes de cidades e, em particular, da Rede 9 – “Financiamento local e Orçamento Participativo”, uma Rede Temática dentro da Rede URB-AL que tratava exclusivamente do tema de meu doutorado. Vi aí a vinculação dos temas todos que trabalhava com relações internacionais e desde então todos os meus projetos trazem esta articulação – uma trajetória de mais de quinze anos em pesquisas, em torno das redes de cidades, mas também em várias outras frentes de atuação internacional de entes subnacionais, todas elas, desde 2011, vinculadas ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas Elza de Andrade Oliveira, por mim co-coordenado.
Quanto mais avanço em minhas pesquisas, mais observo que políticas públicas desenvolvidas pelas localidades tem inextricável relação com o internacional, não somente quando pesquisamos diretamente a sua atuação internacional.
Na medida em que vivemos em um cenário cada vez mais globalizado torna-se cada vez mais difícil falar de qualquer coisa pensando somente localmente. Ainda que eu não goste muito do termo “glocal”, admito que pensar localmente é também, hoje, pensar de forma global, por isso o termo tem seu valor. Vejamos, por exemplo, a situação da pandemia, com a qual todos nós precisamos lidar, de uma maneira ou de outra. O tema se impôs nas nossas vidas de maneira absoluta e, pensar na pandemia, é pensar de forma global. As pessoas que vivem em uma determinada cidade, por mais afastada que ela seja, nunca estão em uma realidade totalmente isolada.
Logo, cada vez mais as questões locais estão relacionadas ao tema das relações internacionais. Vamos pensar também, por exemplo, nos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), que é uma Agenda da ONU, uma organização internacional, cujo objetivo é pensar a qualidade de vida a partir do desenvolvimento sustentável, nos vários pontos do globo. Então, eu estou aqui em Franca, uma cidade específica no interior paulista, e estou pensando questões de gênero, por exemplo, a partir de um grupo de trabalho de Equidade de Gênero que temos aqui. Assim, temos a UNESP de Franca, um pequeno ponto no globo, vinculada a uma agenda internacional. Eu poderia dar muitos exemplos, todos eles mostrando que a gente pode, lógico, nas nossas pesquisas, optar por alguns temas que são mais circunscritos, mais próximos à questão internacional ou menos próximos. Porém, nunca eles são isolados. Nunca, eles podem ser considerados exclusivamente locais ou exclusivamente nacionais.
Mas qual seria a relevância de se pensar estas coisas de forma articulada, sobremaneira, localidades, políticas públicas e dimensão internacional? Tentando ser um pouco mais específica acerca da sua pergunta, por exemplo, as redes de cidades permitiram que muitos países latino-americanos participassem de editais internacionais de redes de cidades europeias e conseguissem financiamento para vários projetos. Então, a atuação internacional dos entes subnacionais, acaba sendo uma possibilidade importante de captação de recursos, troca técnica, aprendizado, enfim, uma série de oportunidades se coloca nessa perspectiva da atuação. Uma questão precisa ser colocada: esse caminho não é unilateral, ou seja, os países de periferia não ficam sempre como sujeitos passivos dessa relação com os países de centro. Isso não é verdade. Se, os países de periferia têm dificuldades ou restrições em termos de recursos financeiros, em boa medida, muitas vezes têm também capacidade técnica, recursos humanos e projetos inovadores, que podem sim ser exportados para o centro.
Vejamos o caso da URB-Al, na sua segunda fase, ocorrida em virtude de seu êxito, o Brasil, assim como outros países do hemisfério sul, coordenou duas redes temáticas. Uma já fiz referência aqui antes, a Rede 9 – coordenada por Porto Alegre -, sobre orçamento participativo, que na época era um projeto inovador do ponto de vista democrático e tornou-se referência mundial, indicado pelo Banco Mundial como uma prática exemplar. E a outra rede temática brasileira era a Rede 10, coordenada por São Paulo, “Luta contra pobreza urbana”. Então podemos perceber que a atuação internacional de cidades é muito relevante, sem dúvidas, para países como os nossos, que muitas vezes possuem dificuldades em termos de obtenção de recursos para o desenvolvimento de alguns projetos, incluindo recursos financeiros e às vezes até recursos técnicos e humanos. Mas, é importante dizer que os países de centro também podem usufruir de trocas recíprocas entre entes subnacionais. Vários países europeus vieram visitar o Brasil – como França, Espanha e Portugal, de forma destacada – e, de alguma maneira, o Brasil exportou para esses países o projeto do OP e suas experiências de combate à pobreza.
Portanto, para mim, a atuação internacional dos entes subnacionais é uma via muito importante de construção e difusão de ferramentas de gestão e de construção de políticas públicas, para além da administração central, que potencializa a atuação dos entes subnacionais em um processo de maior refinamento dessas ferramentas e da própria gestão.
Sempre, com o objetivo maior que é: trazer maior desenvolvimento e qualidade de vida para as pessoas, de todas as regiões de um determinado país, desde as menores localidades até as grandes capitais. Assim sendo, a atuação dos entes subnacionais é muito importante nesse processo de capilarização e de descentralização da construção desses instrumentos e da sua aplicação.
As populações das cidades e os governos locais estão vivendo momentos difíceis na busca do bem-estar e do desenvolvimento local. Há uma crise generalizada (econômica e social) que tem provocado inflação de preços, desemprego, aumento da fome e da pobreza. Na sua visão, qual a capacidade dos governos locais brasileiros de superarem essa crise e por onde começar? Atuar internacionalmente traria de fato algum impacto nesse processo?
Obrigada pela pergunta. Acho que ela ajuda bastante a pensar um pouco sobre esse cenário, que é distinto daquele que vivenciamos nas primeiras décadas dos anos 2000, quando tínhamos um cenário muito mais simpático à atuação internacional dos entes subnacionais. O governo Federal, à época, mesmo desde FHC e depois com os governos de Lula e Dilma tiveram um cuidado muito maior com o federalismo cooperativo, no sentido de estimular iniciativas e práticas dos entes subnacionais. Atualmente, nós estamos vivendo um momento em que essa prática não está sendo muito estimulada. Na verdade, nós temos um certo descompasso no formato de federalismo que temos vivido, que sempre teve lá suas dificuldades, mas que agora vive uma grave dificuldade por parte da liderança da União. Enfim, a crise que nós vivemos, em minha opinião, nesse aspecto, é muito mais política do que de qualquer outro caráter. Mas é também historicamente econômica, pois apesar de ser um país extremamente rico, o Brasil é extremamente desigual, fato que vem de uma longa tradição de nossa história que a pandemia só realçou. Temos ilhas de ostentação e ilhas das flores, como estamos, infelizmente, voltando a viver. O impeachment da Presidenta Dilma, a ascensão de Temer e depois a eleição de Bolsonaro criaram um estado de coisas caótico, do ponto de vista de um desgoverno, de falta de liderança, de falta de um projeto nacional, de uma realidade de pós-verdade e de negacionismo do conhecimento científico e uma falta de confiança absurda, além de uma desproteção social cada vez mais evidente, com a destruição de direitos conquistados. A pandemia chegou em um dos piores momentos da nossa história política. Ao meu ver, não poderia haver pior liderança à frente do nosso país neste momento tão delicado. Qualquer outra liderança teria sido menos catastrófica. Então, realmente os entes subnacionais ficam em uma situação muito complicada, do ponto de vista da sua atuação, sem nenhum apoio e sentem-se até coibidos para qualquer ação, pois qualquer pessoa que pense diferente do Planalto é considerada comunista e inimiga do Brasil. Nós estamos vivendo um momento da política de muita polarização, no esquema ‘Fla X Flu’, ou você ama essa política ou você odeia, não há meio termo. Você não tem a ‘Grande política’, você não tem um debate claro, com argumentos, mesmo que conservadores ou mais progressistas. O que temos são caprichos, perspectivas que são dogmáticas, indiscutíveis e ponto. Então, realmente os entes subnacionais estão vivenciando um momento bastante difícil.
Ainda assim, eu sou uma otimista convicta, porque eu acho que nos piores momentos – aquela ideia da necessidade faz o aprendiz -, muitas cidades e muitos estados que talvez viviam uma situação de maior comodidade, se sentiram mobilizados, justamente pela situação ter chegado em um ponto quase que insuportável. Vejamos o caso de algumas iniciativas de cidades e estados, que, por exemplo, foram contra a ideia do ministro da saúde de que os adolescentes não deveriam ser vacinados. Eles continuaram vacinando, assumindo riscos inclusive de sofrer um processo posteriormente, mas tiveram a coragem de se tornarem protagonistas, se tornando representantes – no sentido máximo – do seu povo, da sua gente. Então, várias iniciativas foram feitas a despeito das orientações do Planalto, que eram orientações que não vinham formalmente, e sim pelas redes sociais, como o Twitter. Eu vejo nesse processo, uma oportunidade. Sabe aquela expressão que o pessoal do campo de públicas gosta de usar? ‘Janela de oportunidade’? Eu acho que esse momento constituiu-se como uma janela de oportunidade importante para muitos entes subnacionais. Eu acho que mais do que nunca, se nós estamos tendo dificuldades de ter essa força aqui dentro, temos o momento ideal para buscar força lá fora. Por exemplo, sobre a bandeira de proteção ambiental, é muito oportuno denunciar para o resto do mundo o que está acontecendo aqui, para que outros países, estados, cidades e províncias se unam a nós, organismos internacionais se unam a nós, para que possamos ganhar força. Sabe aquela ideia de que ‘quando o santo de casa não faz milagre, nós temos que ir para fora?’ Vide a pandemia. A OMS, foi uma referência muito importante para que nós pudéssemos lidar com a pandemia, ainda que com todos os seus limites, ela foi um parâmetro importante, em um momento em que o Governo Federal não oferecia nenhum apoio à sua gente, com uma sucessão de ministros da saúde, cada qual com um protocolo diferente. Qual era a nossa referência? A OMS. Veja como nós estamos conectados sempre, e nesse momento de crise política interna, mais do que nunca eu acho que nós precisamos buscar essas parcerias. Não só por uma questão de captação de recursos financeiros, mas também de outros tipos de recursos, como recursos políticos, científicos, recursos legais, que nos ajudem a lidar com essa crise política e com essa catástrofe que nós estamos vivendo dentro do nosso país.
O Consórcio Nordeste foi formado, de certa maneira, com o intuito de fortalecer a atuação dos governos estaduais brasileiros. Esse tipo de iniciativa pode ajudar os governos a superarem essa crise? A senhora acredita que a coordenação entre os governos pode ser duradoura e trazer um desenvolvimento coletivo para a região Nordeste?
Pois é. Veja o caso do Consórcio Nordeste, que é uma experiência extremamente importante em relação ao que falávamos. A própria professora Liliana Froio, coordenadora do IDeF, estudou bem a atuação internacional dos entes subnacionais do Brasil. Ela começou mais forte com os estados, mas, com o passar do tempo, os municípios tomaram a dianteira nesse processo. Na medida em que pela Constituição Federal os municípios se tornaram entes federados e foram ganhando maior autonomia, vários municípios grandes, com uma maior capacidade, do ponto de vista dos seus recursos financeiros, institucionais etc, começaram a tomar a dianteira nesse processo. Ocorre que desde as eleições municipais de 2016, principalmente o PT, perdeu muito espaço. Este importante partido que tem um histórico muito forte de valorização, a partir do modo petista de governar, do local e de uma perspectiva dos municípios como atores protagonistas e ativos na construção do seu desenvolvimento. Várias municipalidades perderam sua liderança, sendo ocupadas por partidos de espectro político mais à direita e centro, e isso enfraqueceu significativamente a atuação internacional de municípios. Por outro lado, o partido e apoiadores ganharam vários estados, principalmente no nordeste, onde tiveram uma vitória significativa. Com a vitória do Bolsonaro, isso fortaleceu a união entre esses governadores, que compuseram um grupo de oposição, que deu vida ao Consórcio Nordeste. O ‘Consórcio’ não é invenção do Consórcio Nordeste. Nós já tínhamos vários consórcios pelo Brasil, inclusive intermunicipais. Mas, o Consórcio Nordeste tem se destacado, do ponto de vista da atuação internacional dos estados, como uma experiência extremamente relevante e alternativa à situação vivida.
Eu sou uma grande defensora da integração. Seja ela nacional, regional ou internacional. Juntos somos fortes, e eu acredito que isso é muito verdadeiro. Por exemplo, no Brasil, principalmente no Estado de São Paulo, nós temos uma situação de municípios que não são capitais, que são municípios médios – em média 500.000 mil habitantes -, que são cidades referência, cidades pólos e que no seu entorno, em geral, têm muitos municípios pequenos, alguns deles muito pequenos. Então, nesse sentido, os Consórcios intermunicipais são extremamente relevantes. Com eles, você consegue estabelecer uma atuação conjunta e mais horizontalizada, assim como ter muito mais força para lidar com os problemas. Lógico, nós sabemos que há uma disputa política grande, nessas formas de integração. Mas, a despeito disso, a luta política é bastante salutar.
Devo ressaltar que é super importante quando nós falamos desses processos de integração, nós não pensemos só na relação Estado-Estado, mas que nós pensemos sempre em uma relação Estado-sociedade. Então em todas as minhas pesquisas eu sempre trabalho com essa perspectiva. Qual a participação da população, da sociedade civil nesse processo? Eu acredito que a sociedade civil pode auxiliar nessa disputa política, através do controle social, para que – por exemplo -, nos casos dos consórcios intermunicipais, você não tenha um município que mande em tudo enquanto os outros só obedecem. Nesse sentido, o que seria uma saída integrada de solução de problemas, acaba sendo uma solução manipulada por uma cidade maior, que por ser maior, mais forte e ter um PIB mais potente, por exemplo, acaba se impondo, e não é isso que desejamos. Então, essa perspectiva da relação Estado-sociedade, é para mim uma premissa para essas várias formas de integração, desde os consórcios intermunicipais até os estaduais, até as formas de integração e blocos como o Mercosul, etc.
No caso do nordeste, tem um componente a mais. Assim como o sistema internacional se construiu em termos de centro e periferia, aqui no Brasil internamente também aconteceu uma trajetória semelhante. Ou seja, o Brasil teve início com a sua capital em Salvador, que depois migrou para o Rio de Janeiro e dali em diante o centro nervoso econômico, político e social do Brasil passou a ser a região sudeste, com alguns nichos de desenvolvimento no sul e no máximo o desenvolvimento na costa litoral brasileira, principalmente no que diz respeito às capitais. Já as regiões que estão mais para dentro do território, no que se costuma chamar de “Brasil profundo”, na região do centro-oeste, por exemplo, temos regiões que acabaram se tornando, dentro do próprio país, regiões negligenciadas. Ao estudar de forma estrutural a realidade brasileira Celso Furtado já pontuava que, tal como no sistema internacional, havia um centro/periferia no próprio país, tipologia criada por ele mesmo, em parceria com Raúl Prebisch. Deste modo, segundo o autor, nós precisávamos internalizar o desenvolvimento, levar o desenvolvimento para o nordeste e para o norte. Furtado foi o grande articulador da SUDAM e da SUDENE, que foram duas importantíssimas iniciativas nesse sentido, a fim de levar o desenvolvimento aos vários rincões do Brasil. Na ocasião da criação destas superintendências, ele já falava da necessidade de integrar o desenvolvimento por todo o território brasileiro de forma menos desigual. É nítido que se falamos que o país é desigual, o nordeste e o norte são mais desiguais ainda. Assim, um dos motivos para escolhermos estudar o Consórcio Nordeste, no nosso grupo de pesquisa, foi porque vimos uma oportunidade de estudar a atuação internacional dos estados, a partir desse processo de integração, em uma região em que é fundamental se pensar essa questão do desenvolvimento. O desenvolvimento, tal como tratamos em nossas pesquisas, não como sinônimo de crescimento econômico, que está vinculado ao crescimento econômico sim, mas não exclusivamente. Então é necessário criar indústrias e estimular a atividade econômica para criar recursos financeiros, de modo que seja possível investir socialmente. Mas, como já dizia também Furtado, nós temos que pensar em níveis cada vez maiores de homogeneização social, cujo significado representa patamares mínimos de condição de vida, para não haja níveis de indignidade humana como há ainda no Brasil, em pleno século 21.
Então quando falamos do Consórcio Nordeste e de todas essas formas de integração, nós estamos pensando justamente em ganhar força na luta por mais desenvolvimento, com maiores níveis possíveis de homogeneidade social, para todas as regiões, não só para algumas regiões, mas para todo o território nacional e, por que não pensar de forma bastante ousada, para todo o sistema internacional, para que nenhum ser humano passe fome, por exemplo.
A partir da sua experiência na área, como você avalia o papel da cooperação internacional no desenvolvimento dos estados e das cidades brasileiras?
Quando falamos destes dois temas, desenvolvimento e relações internacionais, aparentemente estamos falando de coisas muito distintas. Tradicionalmente, o tema do desenvolvimento, da fome, da pobreza, e de certa maneira também o campo de políticas públicas relacionam-se exclusivamente com o local, o regional ou no máximo o nacional. E as Relações Internacionais (RI), enquanto área não ajuda muito neste aspecto. A área de RI é um campo que surgiu em um contexto muito específico, vinculado ao pós-guerra. Com isso a disciplina nasceu da perspectiva, sobremaneira, da defesa e da segurança, o mainstream das RI durante muito tempo. Norberto Bobbio tem um livro fantástico que se chama “A questão da guerra e as vias da paz”, e nesse livro ele pergunta “Por que o internacionalista tem que ser um estrategista? Ele não pode ser um artesão?” Quando eu li esse livro, confesso que fiquei muito entusiasmada, e eu pude olhar para a área de uma forma mais crítica. Na medida em que as RI, mais tradicionalmente, ficam restritas a essa perspectiva da defesa e da segurança, ou mais recentemente, vinculada a uma leitura mais estreita do liberalismo, ela deixa de refletir e explorar muitos temas que também lhe dizem respeito. Com isso, acaba não se discutindo muitas coisas, como fome, miséria, políticas públicas. Mas como assim, isso não faz parte das Relações Internacionais? Faz e muito.
Nós estamos caminhando de uma maneira cada vez mais promissora na área, ao meu ver. E esta seara os estudos de paradiplomacia têm um papel importantíssimo nesta caminhada. Por quê? Porque os estudos de paradiplomacia aproximam a lupa do internacionalista. Ele deixa de olhar somente para os eventos internacionais e passa a olhar por meio dos eventos internacionais, o que é muito distinto. O que caracteriza uma área, não é o seu objeto, mas como se olha para ele, a partir do referencial teórico e metodológico. Então para se fazer um estudo dentro das RI, eu tenho que usar as teorias e as metodologias desta área. Mas o objeto pode oscilar. E ele pode ser o próprio local ou mesmo as suas interconexões com o internacional. E os estudos de paradiplomacia possuem um potencial muito grande para demonstrar essas intersecções, entre o que é local, e que pode e deve ser estudado pelas lentes da RI. Isso não deve ser evitado, muito pelo contrário.
Entendendo isso, nós conseguimos aproximar muito mais as RI dos estudos sobre o desenvolvimento. Desenvolvimento e outros temas vinculados às condições concretas de vida das pessoas, dos territórios vividos como diria Milton Santos, importam e muito também às Relações Internacionais. E sua consideração é demasiado importante para um maior refinamento dos estudos, principalmente em relação àqueles que exploram o papel da cooperação internacional neste processo. Então, quando a gente consegue trazer esse olhar das RI mais ampliado, nós percebemos como o tema do desenvolvimento é fundamental, principalmente pensado não como uma fórmula vinculada exclusivamente ao desenvolvimento econômico, como muitos estudos insistem em defender ou como a mídia muitas vezes defende.
Trata-se de uma noção de desenvolvimento como liberdade, ou seja, a perspectiva do desenvolvimento não só como renda e não só como um conjunto de necessidades, mas desenvolvimento como um conjunto de capacidades – o que efetivamente as pessoas são capazes de fazer com a renda que elas possuem.
Nos nossos estudos, no âmbito do NEPPs, nós usamos um referencial teórico baseado em um economista indiano, chamado Amartya Sen, Nobel em Economia, um dos grandes idealizadores do IDH. O IDH é um índice sintético que congrega renda, saúde e educação, três variáveis que já fazem uma imensa diferença na análise de condições de vida que, anteriormente à construção do IDH, era restrita à questão da renda. Quando você analisa expectativa de vida (relação com a saúde) e grau de escolaridade (educação) associados à renda (produto interno bruto PIB per capita), já faz uma enorme diferença de como avaliamos uma localidade e suas condições de vida. Trata-se de uma noção de desenvolvimento como liberdade, ou seja, a perspectiva do desenvolvimento não só como renda e não só como um conjunto de necessidades, mas desenvolvimento como um conjunto de capacidades – o que efetivamente as pessoas são capazes de fazer com a renda que elas possuem. Então, é muito diferente uma pessoa que ganha $100 dólares por semana, mas vive em um país em que ela possui uma proteção social adequada, transporte público de mesmo nível, creches gratuitas e remédios gratuitos, de outra que não tem direito a nada disso. Então, a teoria das capacidades de Sen é uma noção do desenvolvimento muito forte para nós, pois leva em conta o fato das pessoas terem liberdade para fazerem o que elas desejam, não o que elas são obrigadas a fazer pela miséria, pela fome, pela impossibilidade de trabalhar em alguma coisa que elas gostariam. E neste ponto Amartya Sen defende um Estado presente, provedor de políticas públicas, que possam garantir esta possibilidade, diminuindo os obstáculos ao seu alcance. É nesse sentido que nós temos tentado encaminhar as nossas pesquisas. Ao analisar as iniciativas de atuação e cooperação internacional, nós temos tentado analisar a potencialidade dessas iniciativas em relação a isso. O argumento é que somente este tipo de desenvolvimento é que pode, de fato, garantir o desenvolvimento dos estados e das cidades brasileiras.
E aqui, as notícias não são muito boas, uma vez que muitas iniciativas de atuação internacional de estados e cidades, consideradas exitosas, não levam em consideração essa perspectiva. Por exemplo, nós fizemos o mapeamento das Secretarias Municipais de Relações Internacionais (SMRIs) no Brasil. Existia uma pesquisa que a CNM (Confederação Nacional dos Municípios) tinha feito até 2008. Nós, no NEPPs, atualizamos esse mapeamento até 2012, e buscamos verificar também quais eram os projetos e quais eram os objetivos principais desses projetos nas cidades que tinham um órgão ou uma secretaria referente à atuação internacional de cidades. E, infelizmente, não era a maioria que defendia uma atuação internacional com o objetivo do desenvolvimento, tal como apontado anteriormente. Boa parte delas estava mais preocupada em promover ações de atuação internacional que trouxessem crescimento econômico à cidade.
Outro aspecto central a ser destacado é que, em boa medida, grande parte destas secretarias ou órgãos equivalentes, de estímulo à atuação internacional, menos ainda premiavam ou consideravam a questão da participação política, mesmo àquelas que compartilhavam uma visão mais próxima de desenvolvimento à defendida na pesquisa. As secretarias em peso – que nesse momento era o ápice da atuação internacional de cidades no Brasil – eram muito omissas em relação à participação da população. E, embora eu acredite e defenda muito a atuação internacional dos entes subnacionais – eu sempre digo aos meus alunos que isso não é só uma agenda de pesquisa, é uma bandeira de luta -, eu defendo que essa bandeira seja cada vez mais articulada à bandeira do desenvolvimento, de construção de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento, com a participação da sociedade civil, como já defendi antes. Então considero fundamental que essa atuação das secretarias internacionais, das redes de cidades, das várias iniciativas nesse sentido, estejam voltadas para projetos não de venda de seus municípios e de seus estados para a lógica do mercado e do capital, mas que estejam voltadas para políticas públicas de desenvolvimento como liberdade, de desenvolvimento da qualidade de vida das pessoas, com a participação ativa delas neste processo. Cansei de participar de eventos com a presença de muitas pessoas famosas na área de atuação e cooperação técnica, mas que omitem esse tema, e estão muito mais preocupadas em vender e comercializar a sua cidade e estado, e nesse sentido enxergam a cooperação técnica como sinônimo de dinheiro, e não como sinônimo de qualidade de vida para a sua gente. E sequer consulta sua gente para saber o que ela deseja. Nesse tipo de cooperação eu acredito e invisto, enquanto agenda de pesquisa e bandeira de luta, pois esse é um projeto não só de pesquisa, mas de vida também.
A partir da argumentação apresentada durante a sua fala, gostaria de saber, para a senhora, qual seria o papel da universidade pública e do alunado no desenvolvimento e na criação de políticas públicas locais?
Excelente pergunta. A universidade possui um papel fundamental nesse processo. Como eu dizia antes, quando falamos de atuação internacional de entes subnacionais, não podemos pensar nessa estratégia como uma mera estratégia de mercado, isso é um erro. Então a universidade tem um papel político, a partir de seus docentes e discentes, no sentido do debate, da crítica e da reflexão, de trazer à tona esse tema, e mostrar como nós temos que pensar as relações internacionais engajadas, a paradiplomacia engajada e a cooperação internacional engajada. O problema é que muitas vezes a universidade não é chamada nas rodas de decisão. Ou, em outros casos, a universidade se omite desse papel, pois é muito mais fácil fazer uma ciência menos crítica, vinculada ao mainstream, na qual nada nem ninguém é criticado e temos todos os projetos aprovados. Nesse sentido, você vai mais pela “ordem”, não questionando o estado das coisas. Eu acho que o papel da universidade é sim questionar o estado das coisas. Mas, muitas vezes fazendo isso, a universidade não tem espaços para ocupar.
Mas nosso papel é também criar esses espaços. Às vezes ficamos esperando que o poder público nos procure. Mas o que nós estamos fazendo em relação a isso? Como nós estamos sendo proativos nesse sentido? Vou dar um exemplo. Nós estávamos fazendo uma pesquisa usando o Cadastramento Único, que infelizmente corre o risco de acabar e ser transformado em um app pelo governo atual. Trata-se de um rico cadastro que reúne – ainda que com muitos limites – informações sobre todas as famílias em situação de vulnerabilidade. Em certo momento, nós oferecemos a uma cidade maior aqui da região de estudo do NEPPs (Região Administrativa de Franca) uma pesquisa usando esses dados. Com a demora de um retorno efetivo, nós oferecemos a pesquisa para dois outros municípios pequenos, que nos acolheram de uma maneira incrível, porque eles não tinham nenhum dado sobre a cidade. As assistentes sociais nos agradeceram muito, porque elas queriam fazer política pública, mas não tinham dados. Então veja, uma pesquisa que para nós foi relativamente simples, mas que foi fundamental do ponto de vista da proposição de políticas públicas daquelas duas cidades.
Nós, enquanto universidade, não podemos ser intelectuais de gabinete, produzindo críticas de gabinete. Nós temos que produzir conhecimento e difundi-lo amplamente, com linguagem acessível a toda a população, assim como criar espaços de atuação.
Se nós falamos que existe um muro entre a universidade e a sociedade, quem deve quebrar esse muro somos nós, e não o contrário, ficar de braços cruzados esperando alguém contratar os nossos serviços. Eu acredito que precisamos, de fato, ‘arregaçar’ as mangas para fazer esse projeto de vida a qual me referi antes realmente acontecer.