Por que a Segurança Alimentar Nutricional é tão ausente na internacionalização descentralizada?

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Pandemia deteriorou a situação de fome no Brasil, que pela primeira vez ultrapassou a média global. Foto: Reprodução/Paraíba Já.

A internacionalização de políticas públicas no Brasil cresceu significativamente após a redemocratização, especialmente por meio da cooperação internacional e multilateralismo, prioridades da agenda de Política Externa Brasileira (PEB) na primeira década deste milênio. As iniciativas para inserção internacional do governo federal também foram seguidas por estados e municípios brasileiros, que através de convênios e irmanamentos estabeleceram relações próximas com governos nacionais e subnacionais estrangeiros. Entretanto, a cooperação internacional descentralizada não se apresenta uniforme. Temas como desenvolvimento sustentável, gestão de infraestrutura urbana e inovação são muito mais trabalhados do que problemas recorrentes como a pobreza e a fome – considerando que a última possui um efeito mais imediato e devastador do que as demais.. 

De acordo com um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em julho de 2021, a fome disparou em termos absolutos e proporcionais no mundo, atingindo uma marca de 30% da população global sem acesso regular a uma alimentação de qualidade durante 2020. No Brasil, esse percentual sobe para 55%, no qual 116,8 milhões de pessoas vivenciaram algum grau de insegurança alimentar em 2020, de um total de 211,7 milhões de brasileiros. Em situação de fome, foram constatados 19 milhões de brasileiros, de acordo com o mesmo relatório. 

Dessa forma, tendo em vista o histórico ativo de cooperação internacional de estados e municípios brasileiros nas mais diversas temáticas e entendendo que o contexto de fome no Brasil também é de gerência local, por que o tema não é tão explorado assim na cooperação descentralizada?

Em entrevista concedida ao IDeF, o professor Associado na Universidade Federal do ABC (UFABC), Gilberto Rodrigues, avalia o atual cenário da inserção internacional do Brasil no campo da SAN, em ambos os níveis central e subnacional, como um retrocesso. Em seu último livro, publicado em 2021 e intitulado “Paradiplomacia: cidades e estados na cena global”, ele explora as tendências da paradiplomacia e da cooperação descentralizada considerando o contexto da pandemia da COVID-19. Para o autor, há temas que ganharam maior energia recentemente, como as mudanças climáticas e o tema da pandemia, de modo que a mobilização de atenção e recursos da cooperação descentralizada se tornou mais direcionada. O professor também afirma que, em paralelo, “os temas da sustentabilidade e da inovação têm um grande potencial percebido para atrair financiamento público e do setor privado (…), ao passo que a urgência do combate à fome e à segurança alimentar não atinge a todos, mas sobretudo os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis.” Por isso, aponta ele, “embora haja políticas solidárias nesse campo, elas não são suficientes para atender às enormes demandas agravadas pela pandemia e pelas dificuldades e erros causados pelo próprio governo federal, no caso do Brasil.”

Ano passado a FAO publicou um relatório sobre insegurança alimentar no mundo, constatando que a pandemia agravou a situação da fome e da pobreza no Brasil. Embora não seja um problema de hoje, é relativamente incomum que estados e municípios brasileiros busquem a cooperação internacional para tratar especificamente da temática. Na sua opinião, por que políticas públicas de cooperação descentralizada são mais comuns em áreas como sustentabilidade e inovação, mas não no tema da insegurança alimentar uma vez que esse é, também, um problema mundial? 

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o Brasil retrocedeu muito no campo do combate à fome e nas políticas de segurança alimentar. Nos governos Lula e Dilma esse tema foi prioritário e levou o país a tornar-se modelo no desenho de políticas públicas globais. Isso impactou a Política Externa Brasileira (PEB) sobretudo na cooperação Sul-Sul, em que o país se destacou até 2016, quando houve o golpe contra a Presidenta Dilma. Com o advento da pandemia, e o processo de desconstrução das políticas sociais iniciado com o governo Temer e em marcha acelerada com o governo Bolsonaro, a situação se agravou sobremaneira. Se antes a cooperação descentralizada se dava majoritariamente em uma chave cooperativa (em que a União ou bem apoiava iniciativas de estados e municípios ou bem não criava obstáculos para elas), passamos a ter um presidente contra a federação. Isso dificultou muito a sinergia necessária para ações visando fomentar a segurança social e alimentar, que deixaram de ser prioridade do governo federal durante a maior parte do mandato do presidente Bolsonaro. Ao mesmo tempo em que o Brasil se retira do cenário de cooperação internacional, a situação interna de regressividade no campo dos direitos humanos e de total ausência de federalismo cooperativo entre a União e os demais entes federados, dificulta a ação subnacional de estados e municípios mais vulneráveis, com pouca o nenhuma estrutura paradiplomática para agir, e que dependiam do apoio federal (MRE, ABC, Presidência) para as suas ações. Por outra parte, a mudança climática e o tema da pandemia galvanizaram as atenções e recursos para a cooperação descentralizada, e isso pode ser explicado pela urgência disseminada que ambos os temas demandaram em todo o planeta, aumentando a sinergia entre as redes regionais e globais, como a Mercocidades, a CGLU, ICLEI e C40. Em paralelo, os temas da sustentabilidade e da inovação têm um grande potencial percebido para atrair financiamento público e do setor privado. Há uma grande onda global de transformação de matriz energética, de economia verde circular, e esses temas logram fomentar a cooperação multinível em todos os lugares. Ao passo que a urgência do combate à fome e à segurança alimentar não atinge a todos, mas sobretudo os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis. Embora haja políticas solidárias nesse campo, em cooperação vertical e horizontal, elas não são suficientes para atender às enormes demandas agravadas pela pandemia e pelas dificuldades e erros causados pelo próprio governo federal, no caso do Brasil. 

Dado o contexto de interdependência internacional atual, é possível notar efeitos de movimentos locais na esfera global, e vice-versa. Em que medida as práticas de cooperação descentralizada internacionais (ou a falta delas) na temática podem refletir futuramente nas próprias práticas brasileiras? Existem exemplos bem sucedidos de políticas públicas de enfrentamento da insegurança alimentar que poderiam inspirar estados e municípios brasileiros? 

Um dos aspectos positivos de aprendizagem da pandemia – que não ocorreu sem sacrifícios e dor pelas perdas, sobretudo das perdas que poderiam ter sido evitadas com políticas sanitárias e vacinas em tempo – é a percepção de que estados e municípios podem agir internacionalmente para suprir carências ou obstáculos domésticos no âmbito federal. No Brasil isso não se deu da melhor maneira, ou seja, pela via do federalismo cooperativo, mas por via da cooperação horizontal entre municípios, entre estados e entre estados e municípios. Os consórcios foram um exemplo disso. Eu creio e defendo (no meu livro Paradiplomacia: cidades e estados na cena global, 2021) que a paradiplomacia e a cooperação descentralizada ganharam um novo fôlego que em muitas situações permanecerá na gestão local. Não posso falar de casos específicos em relação ao enfrentamento da insegurança alimentar no Brasil, pois não acompanho de perto esse tema em nível subnacional e não disponho de dados concretos. Penso que a inspiração dessas políticas é de via dupla: tanto há no Brasil bons exemplos (sufocados pelas dificuldades da crise política e da pandemia) que podem inspirar internacionalmente, quanto de boas práticas de parceiros internacionais. Reitero que no caso do Brasil, devido a um governo federal hostil às relações intergovernamentais e à cooperação federativa, tanto a cooperação descentralizada prestada quanto à recebida foram prejudicadas e a muito custo econômico e político sobreviveram e foram além de suas possibilidades, mas concentradas sobretudo no combate à pandemia.

REFERÊNCIAS

FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome, FAO. https://doi.org/10.4060/cb4474en

PREFEITURA DE CONTAGEM. Prefeitura lança campanha de segurança alimentar “Contagem Sem Fome”. Acesso em 04 maio 2022. Disponível em: <https://www.contagem.mg.gov.br/novoportal/prefeitura-lanca-campanha-de-seguranca-alimentar-contagem-sem-fome/>. 

RODRIGUES, Gilberto M. A. Entrevista sobre fome e paradiplomacia para o IDeF. [Entrevista concedida a] Alba Tavares. IDeF (https://idefufpb.com/), 27 abr 2022.

SANTIAGO, Liziane Aline. Internacionalização da política pública de segurança alimentar e nutricional no contexto da Paradiplomacia em uma metrópole brasileira. 2020. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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