Professor da UFABC fala sobre lançamento de livro ‘Paradiplomacia: cidades e estados na cena global’

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Professor Associado I, Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) da Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e professor do Programa de Pós em Ciências Humanas e Sociais. Membro da Cátedra Sergio Vieira de Mello da UFABC.

Sinopse do livro: Mesmo não sendo algo tão novo, cidades e estados têm atuado nas relações internacionais de forma mais visível nos últimos tempos. Por meio da paradiplomacia, governos subnacionais, representados por seus prefeitos e governadores, formam parcerias, realizam cooperações técnicas, assinam acordos com poderes locais em outros países, integram redes de cidades e participam de foros e reuniões multilaterais na ONU. Como e por que cidades e estados estão na cena global? Nesse livro, Gilberto M. A. Rodrigues, professor de Relações Internacionais da UFABC e conhecido pesquisador da área, expõe de forma didática o que é a paradiplomacia, como ela surge e se desenvolve no Brasil e no globo. O livro aborda ainda a história e os avanços desse fenômeno e por que ele se destaca no combate ao aquecimento global, bem como o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

O senhor recentemente lançou o livro “Paradiplomacia: cidades e estados na cena global”. Pode nos explicar, resumidamente, a metodologia utilizada na pesquisa e como foi o processo de organização e publicação do material? 

Este livro surgiu a partir de um convite que eu recebi do editor da Editora Desatino, em 2019. O Felipe Tavares, que já sabia que eu trabalhava com esse tema já há algum tempo, e a editora tem uma coleção chamada Elementos, que é uma coleção com introdução a temas. Nós nos reunimos em outubro de 2019 para conversar sobre isso, acertamos a minha entrega de um livro sobre paradiplomacia. E eu, naquele momento, iria pensar a partir de um acúmulo que eu já tinha de interesse, leitura e pesquisa sobre o tema e iria propor a ele um esquema para desenvolver o livro no ano de 2020. Entretanto, em novembro eu iria partir para a Alemanha, onde passaria um período de 3 meses, para um estágio sênior financiado pelo CAPES Print.

Muito bem, fui à Alemanha e de certa forma também colhi alguns materiais e fiz reflexões para pensar a estrutura do livro. Mas ao voltar para o Brasil, no final de janeiro de 2020, a pandemia já tinha se instalado na Europa e no Brasil, pouco tempo depois foi decretado estado de emergência para lidar com a pandemia, suspensão de várias atividades, etc. Isso estamos falando já em meados de março. Então, o que ocorreu: a minha ideia original, baseado no que eu já havia pesquisado sobre paradiplomacia, sofreu uma mudança de rota na construção do livro, porque com a pandemia e com os desdobramentos da pandemia no Brasil, a paradiplomacia ganhou uma importância e um certo destaque que ela não tinha até então devido aos conflitos entre o Governo Federal, o Presidente Bolsonaro, e os estados e municípios. 

Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios poderiam, de forma autônoma, decidir sobre protocolos sanitários na pandemia. Essa decisão foi um divisor de águas para que estados e municípios pudessem desenvolver uma série de ações que estavam aguardando o governo federal. E uma dessas frentes foi a frente paradiplomática. 

Assim, quando eu estava pensando o livro eu fui, digamos assim, colhido por esses fatos daquele momento e eu então comecei a pensar e a repensar a estrutura do livro com base nessa situação da pandemia e da situação do meio ambiente, que havia sido um marco importante de 2019, os enfrentamentos entre o governo federal e os estados e municípios na área ambiental. Com isso, eu pensei em um livro que pudesse incorporar toda a trajetória paradiplomática, sobretudo do Brasil, porque o livro foi pensado para o Brasil, ele foi pensado para um leitor e uma leitora brasileiros, mas nada impede que pessoas de outros países possam ler e entender. Entretanto, o foco do livro é para compreender a realidade brasileira. Ele foi pensado para essa leitura e para esse leitor, então eu procurei aproveitar todo o acúmulo que eu tinha de pesquisa e eu comecei a trabalhar esse tema em 1998, um ano antes do meu ingresso no doutorado da PUC-SP Logo, quando eu ingressei no doutorado meu projeto já era sobre esse tema que eu denominei “política externa federativa”, pela primeira vez foi utilizada essa expressão na academia brasileira para identificar um fenômeno paradiplomático. Assim, de 1999 a 2004 eu fiz meu doutorado, e a minha tese foi sobre isso, com uma análise teórica e também com alguns estudos de caso. 

Venho pesquisando sobre esse tema há praticamente 23 anos, e isso me permitiu já ter uma visão do que eu gostaria de fazer em um livro que seria introdutório. Dividi o livro em seis capítulos, procurando destacar, por exemplo, a diferença entre diplomacia e paradiplomacia, que é uma questão-chave dentro do marco conceitual daquilo que dentro das relações internacionais a gente procura entender esse tipo de fenômeno. O livro foi pensado numa chave interdisciplinar, assim, como eu me considero como pesquisador. Então a questão da diplomacia e da paradiplomacia, a questão das redes de cidades, um capítulo sobre isso e outro sobre a relação global-local, e aí por exemplo falando das global cities, as cidades globais, e outro capítulo falando da questão jurídica, do marco regulatório, como que funciona isso, outro para falar da política externa, como que o campo da política externa que está dentro das Relações Internacionais mas também está dentro da Ciência Política, como que aborda o tema da paradiplomacia. E esse é um capítulo que eu faço uma análise crítica sobre a nossa literatura, que ao meu ver é muito escassa e muito deficitária sobre isso. Além disso, também tratamos como que municípios e estados poderiam desenvolver uma política externa. E o último capítulo, especificamente falando das questões do meio ambiente e da pandemia, onde eu procurei concentrar essas reflexões que eu havia comentado antes, que começaram quando eu fui para a Alemanha mas que se intensificaram com a pandemia, no sentido de pensar “Quais são os grandes temas da paradiplomacia na atualidade? Quais são os temas que impulsionam a paradiplomacia na atualidade?”, então esse capítulo teve esse objetivo de mostrar porque a questão ambiental, e particularmente a mudança climática, e porque a pandemia tornaram-se alavancas para a paradiplomacia, no mundo todo, não só no Brasil. Essa foi a estrutura do livro, com base nessa experiência que eu já tinha acumulada, de ter feito a minha tese de doutorado, de ter escrito livros e artigos, de ter visitado vários países e ter conhecido vários tipos de federalismo comparado e eu pensei essa estrutura com base em certo recorte teórico, mas também com base na minha própria experiência com o tempo.

Vimos que a pergunta central do livro é a questão “Como e por que cidades e estados estão na cena global?”. Poderia comentar os principais elementos para resposta para essa pergunta? O que faz com que a paradiplomacia ganhe importância nas estratégias políticas de estados e municípios?

Essa pergunta pode ter diferentes respostas a partir do momento histórico que nós estamos vivendo. Neste atual momento, em que estamos vivendo, essa resposta terá alguns conteúdos muito conjunturais. Mas, vamos deixar a conjuntura para o final da resposta. Vamos falar um pouco do plano de fundo, o background da paradiplomacia. Dentro da Teoria das Relações Internacionais, quando a gente estuda tanto a teoria como a história das relações internacionais, as duas devem ser bem conjugadas para a gente poder montar um quebra-cabeça do fenômeno internacional, nós percebemos que nós vivemos um período ainda muito marcado pelo sistema vestfaliano de Estados nacionais. O Tratado de Vestfália gerou um concerto internacional muito marcado pela presença e pelo protagonismo dos Estados nacionais. E, no momento em que existe essa fundação do sistema de Estados, do sistema internacional formado por Estados nacionais, o mundo vivia um período de grande fragmentação, que se deu ao longo de toda baixa e alta Idade Média, onde as cidades tinham um grande protagonismo. 

O ponto central para responder a sua pergunta é que no pós-Segunda Guerra Mundial, entre as décadas de 1970-1980, o protagonismo e o monopólio dos Estados-nacionais na cena internacional começou a ser questionado por outros atores internacionais. E com isso, começa todo o debate sobre os novos atores internacionais, e aí tem vários autores da ciência política, da sociologia, que vão se dedicar a entender esses novos autores. É nesse momento que começa-se a identificar que as relações internacionais não são um ambiente povoado apenas por Estados-nacionais. Em alguns casos, pode até haver protagonismo de outros autores. Nos EUA também, autores como Joseph Nye e Robert Keohane, os grandes teóricos do chamado “Paradigma da Interdependência” , a partir de onde eles desenvolvem a Teoria da Interdependência Complexa, a partir das questões fronteiriças entre EUA, Canadá e México.

Nesse sentido, começamos a nos perguntar, e as empresas multinacionais? E as organizações não governamentais? E os movimentos sociais? E os governos subnacionais? Principalmente cidades fronteiriças, que possuem uma dinâmica tão própria, tão particular, que muitas vezes não tem nada a ver com o Estado nacional a qual elas participam, tem muito mais a ver com aquele universo da fronteira, que tem uma dinâmica muito própria. Não se pode impedir isso. E pelo contrário, há de se estimular isso, pois é benéfico para a dinâmica das relações internacionais. Então tudo isso facilita muito que as localidades pudessem também se conectar entre si. 

Com isso, passamos a ter autores como o Francisco Aldecoa e o Michael Keating, que vão publicar uma obra importante no início dos anos 90, sobre Paradiplomacia, reunindo vários autores. Um desses autores é o Noé Cornago, da universidade do País Basco, que vai se transformar em uma referência até hoje, com uma grande influência na América Latina, a partir da conceituação da Paradiplomacia, dos seus estudos, da chamada transformação da diplomacia. E aí, chegando nos anos mais recentes, eu costumo trabalhar com três eixos fundamentais da Paradiplomacia contemporânea: o eixo da globalização, o eixo da descentralização e o eixo da integração. E me parece que esses três eixos estão muito conectados um ao outro, ou seja, eles estão muito vinculados e não podem ser separados. Mas podemos tratá-los de forma mais independente a meu ver, metodologicamente isso é possível, e eu creio que essa tríade nos ajuda a explicar bastante como o fenômeno se desenvolve e chega até onde nós estamos, a partir dos anos 80 e 90.

Globalização, principalmente a partir do recorte neoliberal, nós sabemos que nos anos 80 é o período da desregulamentação econômica. Países fechados têm que se abrir, e não apenas porque querem se abrir, mas porque muitas vezes são obrigados a se abrir, como foi o caso do Brasil. E no mundo em desenvolvimento, a partir das ações do sistema de Bretton Woods, do FMI e do Banco Mundial, muitos países em desenvolvimento foram obrigados a abrir suas economias para poder renegociar suas dívidas externas, que foram acumuladas com as crises do Petróleo de 1973 e 1979. Aí nós temos o cenário da globalização principalmente marcado pela questão econômica mas não apenas isso, ele é marcado também pela questão comunicacional, nós passamos a ter também novas tecnologias que facilitaram a comunicação. Portanto, a globalização explica em parte como que governos subnacionais começam a se mover na cena internacional, pois esse processo foi facilitado, antes não era. 

Outro eixo é a descentralização. Isso é muito claro no caso da América Latina, sobretudo se nós analisarmos o que foi o período dos Regimes Militares, das ditaduras, que concentraram o poder. Mas na verdade, o poder sempre esteve muito concentrado na América Latina. Só que com o fim das ditaduras, nós passamos a ter, em todos os países da América Latina, novos debates constitucionais para criação de novas constituições. Isso ocorreu no Chile, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e no Brasil, que ocorreu entre 1987 e 1988, que foi o regime da Constituinte, onde tivemos uma nova Constituição. E a nossa Constituição de 1988, uma das questões-chave dela, é o princípio da descentralização. Então aquele poder que estava acumulado durante a ditadura militar, pelos atos institucionais que foram baixados, pela Constituição de 1969 e pelas várias legislações altamente concentradoras de poder, foram – pelo menos em grande medida – desmontadas com a nova Constituição de 1988, que passa a reconhecer, em primeiro lugar: os municípios também são entes federativos. Até então não havia esse reconhecimento explícito. Aqui também é importante dizer que não se partiu do 0, a constituinte que aprovou a Constituição e que foi promulgada em 5 de outubro de 1988 não refundou o Brasil. Ele faz um acerto histórico, recuperando questões importantes, como a autonomia municipal que existe desde a colônia no Brasil. 

Enfim, nós temos um histórico riquíssimo de altos e baixos, de centralização e descentralização, têm muitos autores que tratam desse tema no campo do federalismo, da ciência política, das políticas públicas, da sociologia. Autores muito bons que explicam em grande medida esse movimento de fluxo de centralização e descentralização. Mas a Constituição de 1988 gerou uma onda de descentralização. E o que diz o artigo 1º da nossa Constituição? Diz que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de estados, Distrito Federal e municípios. Isso significa que está no mesmo nível hierárquico federativo esses entes da federação, incluindo os municípios. Do ponto de vista jurídico e político, os municípios têm o mesmo nível de igualdade – essa é a minha visão – que têm os estados e a união. Tem muitos autores que discordam, e dizem que não é possível equiparar os municípios aos estados, por exemplo. Eu entendo que a equiparação, digamos assim, igual para igual, ela não existe mesmo. Mas existe uma certa igualdade entre municípios, estados, Distrito Federal e a União. 

Bom, e o que gerou isso, a partir da Constituição de 1988 e sua implementação a partir da sua promulgação? Gerou uma série de novas políticas locais. Políticas forjadas na localidade. O federalismo brasileiro não é um federalismo competitivo, é um federalismo cooperativo. Ele foi pensado para que União, estados e municípios pudessem cooperar entre si. Isso é importante para entender, inclusive, o desenvolvimento da paradiplomacia no Brasil. Essa é uma inspiração da Constituição alemã, que é o federalismo cooperativo. 

Bom, o fato é que o município no Brasil ganhou um novo status e passou a exercer isso. A gente tem o SUS, que foi inaugurado com a Constituição de 1988, que é um dos melhores sistemas do mundo de federalismo cooperativo no campo da saúde (União, estados e municípios). Ele só foi detonado no governo Bolsonaro. Aliás, o governo Bolsonaro é um governo anti federativo. Eu até escrevi um artigo junto com a minha colega Vanessa Elias de Oliveira, da UFABC, que é especialista em políticas públicas, nós intitulamos esse artigo “O Presidente contra a Federação”, o Presidente Bolsonaro desde o seu primeiro momento como presidente se colocou contra a Federação brasileira, contra governadores, contra prefeitos. Inclusive, estabelecendo esses governadores e prefeitos como inimigos, não como adversários. Ou seja, uma lógica de polarização absoluta. A paradiplomacia, ela não fica alheia a isso. Ela vai ser instrumentalizada, importante lembrar que a paradiplomacia é uma atividade meio, não uma atividade fim. Então, com o desenvolvimento das políticas públicas do Brasil e dessa descentralização que eu me referi, a paradiplomacia foi se desenvolvendo também com esse componente duplo que eu chamaria de legitimidade/legalidade. 

Finalmente, o terceiro eixo é o eixo da integração. Esse eixo vai está conectado com a globalização, porque a integração mais contemporânea, dos anos 90, tanto na União Europeia, com o Tratado Maastricht em 92, como no Mercosul, um pouco antes em 90, ele vai se dá a partir de um regionalismo que se desenvolve aberto para a globalização. 

O que o regionalismo vai propiciar para a paradiplomacia? Vai propiciar um universo de novas interações, e de criação de novas legitimidades de atuação. Vamos pegar o caso da União Europeia, as cidades, como dito anteriormente, já tinham um histórico riquíssimo de relações internacionais antes do próprio Estado-nacional, que foi a Liga Hanseática, durando aí seus quatro/cinco séculos, conectando cidades no mar do norte, desde os países baixos, passando pela Alemanha, indo até a Polônia. Isso tudo, então, não se perde na Europa. Ela é recuperada com as redes de cidades europeias, que contribui para a criação do comitê de regiões, que é criado no Tratado de Maastricht. 

No que se refere à América Latina, antes mesmo da criação do Mercosul, já se discutia, nas questões fronteiriças quando Brasil e Argentina começam a desenvolver a sua integração, com a queda da ditadura na Argentina e a ascensão do Rául Afonsin como presidente-civil eleito pós-ditadura argentina e no Brasil com a eleição do Tancredo – que não toma posse – e o Sarney, o vice eleito pelo colégio eleitoral, junto ao Afonsin, passam a se reunir e em 1986 é assinada a Ata de Iguaçu. Essa Ata é um documento fundante do que veio a ser depois o Mercosul, pois ali começa a integração bilateral entre Brasil e Argentina, que depois vai incorporar o Paraguai e Uruguai, e associados. E o que vai ocorrer depois dessa Ata? Uma série de protocolos vão ser assinados, entre eles está o protocolo 22, que trata sobre integração fronteiriça. E nesse protocolo se prevê o papel das províncias argentinas, dos estados fronteiriços brasileiros e dos municípios de fronteira. Eles passam a ter a possibilidade de participar oficialmente do processo de integração. Nós estamos falando de meados dos anos 80. Ou seja, antes do Mercosul. Quando o Mercosul é criado isso já era uma realidade no campo fronteiriço. 

Avançando mais, no governo Lula, foi aprovado em 2004 – e o Brasil teve um papel importante nisso – o nosso Comitê de Regiões, chamado de Fórum Consultivo de Municípios, estados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR). O FCCR foi aprovado em uma resolução do mercado conselho comum, do Mercosul, e em 2007 foi implementado na Cúpula do Mercosul do Rio de Janeiro. Eu tive o prazer de estar nessa Cúpula, e presenciei a instalação do Fórum Consultivo no Rio, em 2007. O Fórum Consultivo foi instalado com municípios e estados, e  na época havia uma grande expectativa. Essa expectativa acabou se frustrando em grande medida. Mas, o FCCR ainda está aí, apesar de estar meio descontinuado, sem funcionamento. Assim como o próprio Mercosul, o que começou com o governo Temer e se agravou com Bolsonaro.

O que eu queria chamar atenção para a relação do Fórum com a paradiplomacia, é porque o Fórum garante uma legitimidade internacional para estados, províncias e municípios dos países do Mercosul num órgão internacional. Então, para mim, quando participava de vários debates e me deparava com questões como “isso a paradiplomacia não pode fazer, precisa ter uma regulamentação, etc”, eu me indagava como é que se explica que os municípios, estados e províncias participem de um Fórum do Mercosul, tendo assento direto no Mercosul, e não podem fazer acordo bilateral com uma cidade em outro país. Então eu passei a defender que o FCCR gerou um grau elevado de legitimidade internacional, e de legalidade também, para estados e municípios praticarem a paradiplomacia. No caso brasileiro ainda tem alguns benefícios que agregam nessa situação, pois o Itamaraty passou a se conformar com a paradiplomacia brasileira. Ele não foi contra. Cabe aqui também registrar, acho que é importante, a visão que os Presidentes da República tiveram. O Presidente Fernando Henrique Cardoso teve uma visão muito mais aberta e liberal da paradiplomacia. Ele tem inclusive um livro, uma grande entrevista que ele deu ao Roberto Pompeu de Toledo, na época da revista Veja, onde ele diz “Nós não vamos nos colocar contra esse movimento de governadores e prefeitos, nós vamos tentar inclusive trazê-los para a diplomacia nacional”. E é por isso que durante o governo de FHC, surge a expressão “diplomacia federativa”. Mas, para mim, paradiplomacia é algo mais amplo, e incorpora inclusive a cooperação descentralizada enquanto fenômeno das relações internacionais.

Então esses três eixos – globalização, descentralização e integração – eu entendo que explicam em grande medida o desenvolvimento da paradiplomacia no Brasil, na América Latina e em vários outros países também.

Em uma entrevista para a rádio CBN, o senhor comentou sobre a atuação de estados brasileiros durante à COP 26 como uma coalizão contra às medidas do governo Bolsonaro em relação ao meio ambiente. Pode nos contar qual a relevância desse tipo de coalizão para a mobilização da política externa brasileira, em uma era em que o Brasil se encontra desacreditado no sistema internacional?

O Brasil, desde o período da redemocratização, na questão ambiental, deixou o papel de regime autoritário e vilão na questão ambiental, nos direitos humanos, coisas horríveis foram feitas durante a ditadura militar,tanto no campo dos direitos humanos como na questão ambiental. Isso está muito bem documentado. E aí, quando entra no período do Sarney e da “Nova República” (1985-1989) a diplomacia brasileira passa por vários ajustes. O Presidente Sarney vai à Assembleia Geral da ONU e faz discursos para dizer que o Brasil é um novo país, redemocratizado e alinhado com as grandes democracias do mundo, etc. Mas havia ainda um passivo da Ditadura Militar terrível. Tanto em direitos humanos como em meio ambiente, principalmente no que diz respeito a esse primeiro. Na área ambiental nós tínhamos ainda diversos atores domésticos que ainda estavam com mentalidade do regime autoritário. E aí, ainda tinha uma série de projetos dos militares para o desenvolvimento da Amazônia, Transamazônica, projeto Carajás, coisas assim horríveis do ponto de vista da degradação ambiental. E assim ainda não tinha sido devidamente desmontado, porque o Sarney, precisamos lembrar, fez parte do regime militar. Uma vez que o Tancredo morreu, ele assumiu. Ele queria fazer uma composição, mas no campo dos direitos humanos e do meio ambiente era impossível fazer tal coisa, pois alguém vai sair perdendo, principalmente os movimentos sociais, os povos indígenas, os quilombolas e assim por diante. Portanto, o assassinato do Chico Mendes gerou uma onda de protestos na França, o Presidente Miterrand, da França, acusou o Brasil de não cuidar da Amazônia, etc. E a partir dali, começou uma reação muito forte do Itamaraty, para tentar reverter a situação. Então, o governo Sarney oferece para as Nações Unidas “nós queremos ser a próxima sede da conferência sobre meio ambiente da ONU”. A primeira tinha sido em Estocolmo (1972), e teria que haver uma em 1992, 20 anos depois. O Brasil oferece o Rio de Janeiro como sede, e a ONU aceita. Então ela vai ocorrer durante o governo Collor, já não mais na Era Sarney. Mas esse processo do Brasil se oferecer para ser sede da Rio 92, várias questões começaram a ter lugar na diplomacia brasileira. E uma delas é que o Brasil começa a se colocar como um país que quer ter voz na questão ambiental global, e então começa a se posicionar de forma mais progressista nessa agenda. Questões de mudanças climáticas, questões de biodiversidade, isso tudo vai se refletir na Rio 92. O Brasil saiu da conferência como um player de meio ambiente, pois ajudou a aprovar o acordo sobre mudança climática, o acordo sobre biodiversidade e a declaração sobre florestas. Tudo isso, o Brasil como país sede, com a sua diplomacia hiper preparada e sofisticada, diplomatas muito bem treinados e excelentes negociadores. Portanto, o país saiu com uma imagem muito positiva da Rio 92, que atravessa o governo do Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma e entra no governo Temer já um pouco debilitado. Ainda assim, o Temer manteve uma certa política protocolar em vários campos, ele não mudou paradigmas, mas foi reduzindo o papel do Brasil mesmo assim. Mas aí, quando entra o governo Bolsonaro, temos uma mudança drástica do paradigma diplomático brasileiro, que era composto por negociações e políticas progressistas em várias áreas, sobretudo depois do governo da Dilma, em que o Brasil se tornou um player, membro do G20, onde o Presidente da República era consultado pelo Secretário Geral da ONU em vários assuntos, pelos presidentes dos grandes países do norte global, etc. Com o governo Bolsonaro, nós tivemos o rompimento disso. E aí o que ocorre, na área ambiental o Brasil se retira desse tabuleiro como player progressista, o Brasil puxa o freio de mão, pois o próprio Presidente Bolsonaro começa a negar o aquecimento global. Isso é uma coisa surreal do ponto de vista político e diplomático. O presidente da República de um país como o Brasil começa a pôr em questão os relatórios do IPCC, e pôr em questão as projeções catastróficas que o IPCC está colocando, que são baseadas na ciência. Só que o Brasil já havia assumido vários compromissos. O Brasil assinou o acordo de Mudanças Climáticas, o Protocolo de Kyoto e criou uma série de mecanismos voltados para essa temática. E além disso, os estados brasileiros, muitos deles, criaram as suas estruturas, e os municípios também. Lembrando que o meio ambiente é competência comum de acordo com o artigo 23 da Constituição. Não é só o governo federal que atua. São os estados e municípios também. É verdade que o governo federal tem a atribuição de coordenar a política, mas se ele não coordenar – e isso foi o que o Supremo disse na decisão de abril de 2020 – em uma situação emergencial os estados e municípios podem agir entre eles, eles não estão vedados de agir.

E aí o que é que ocorre com a questão ambiental e essa ausência do Brasil? Primeiro que nós passamos um período, e até hoje, de certa forma, estamos enfrentando, de desconstrução das políticas ambientais do Brasil. O que nós podemos dizer que foi a gestão do Ministro Ricardo Salles? Eu prefiro chamá-lo de Ministro anti-meio ambiente, pois ele advogou contra o meio ambiente enquanto foi ministro. Isso ainda está para ser provado na justiça, há vários processos judiciais contra ele. O fato é que, o que ocorreu no Brasil foi uma total desconstrução das questões ambientais e os governos estaduais e municipais não assistiram isso de camarote sem fazer nada. Pelo contrário, eles resolveram partir para ações próprias. Uma parte dessas ações foram ações paradiplomáticas. Quando o Presidente Bolsonaro detonou, junto com Ricardo Salles, o Fundo Amazônia, em 2019, nós tínhamos uma situação em que a Alemanha e a Noruega, como principais investidores do Fundo, foram acusados de má gestão. Isso foi um escândalo diplomático. Os diplomatas procuram tratar o escândalo da forma mais suave possível, mas nem ali foi possível. Tanto que o Fundo Amazônia até hoje não foi reabilitado, porque nunca foi feita uma retratação do governo federal para essas acusações, e não houve um acordo para retomada do Fundo. Além disso, a agenda diplomática ambiental do Brasil começou a ficar travada nos fóruns internacionais. O Brasil não tinha mais posições progressistas, não tinha mais iniciativas, nem liderança. Os governadores passaram a atuar, então, de maneira concertada nos fóruns internacionais. Os prefeitos, através das redes, como ICLEI e C-40, passaram a atuar em conjunto também para fazer valer seus interesses, sobretudo na questão do aquecimento global.

Então quando chegamos na COP-26, que aconteceu há pouco tempo, o presidente brasileiro decidiu não comparecer à conferência. Ele deveria ter ido, o Brasil é uma potência ambiental. O fato do nosso país ter um governo que não faz por merecer a sua potencialidade urbana e ambiental, não significa que o Brasil não seja reconhecido como uma potência ambiental, pois aí é o Estado brasileiro, o território. Não estamos falando de governo. O fato é que o presidente não vai a COP-26, envia o Ministro do Meio Ambiente – que é um ministro fraco, que ninguém sabe o nome – com posições muito tímidas. Então, o Brasil perdeu o seu protagonismo. E quem vai tentar recuperar esse brilho são os governadores, que vão a Glasgow – também alguns prefeitos – que se articulam e se credenciam na Conferência para poder fazer reuniões paralelas, porque na Conferência oficial só participam os Estados. É aquilo que nós falamos antes, o multilateralismo ainda está na moldura vestfaliana. Mas as reuniões paralelas nas conferências da ONU elas dizem muito, e são muito importantes hoje em dia. Tanto de ONGs, como de governos subnacionais. E os governadores também fizeram suas reuniões. 

Em suma, a paradiplomacia ambiental, como ela também já é qualificada, está muito ativa hoje. Para terminar, gostaria de pontuar que a paradiplomacia da pandemia, da saúde, é uma paradiplomacia que se constitui na pandemia da Covid-19, e que vai trazer os holofotes para governadores e prefeitos que tiveram – não por vontade simplesmente própria -, mas por necessidade, tiveram de comprar equipamentos, máscaras, respiradores. A paradiplomacia foi necessária, por exemplo, os primeiros lotes de vacina aplicados foram da CoronaVac. Ou seja, não fosse o estado de São Paulo ter feito o acordo com a SinoVac e a diplomacia chinesa, a diplomacia das vacinas, ter se conectado ao estado de São Paulo e ao Instituto Butantan, não teríamos perspectivas de vacina tão cedo.

O fato é que ele pode sim dizer que a Corona Vac foi a primeira vacina que chegou ao Brasil, e se não fosse por ela nós ainda estaríamos numa situação muito ruim de baixa cobertura vacinal. Então, isso se deu através da paradiplomacia do governo de São Paulo com a China. Isso é importante registrar que, independentemente das colorações políticas que haja, foram movimentos paradiplomáticos. E aí, eu acho que a literatura da paradiplomacia ela nos dá indicações de que isso também ocorre. O Michael Keating, quando ele fala que as três principais motivações para a paradiplomacia são: políticos, econômicos e culturais, quando falamos do político, também estamos falando do político-partidário. E, nesse caso, ele foi benéfico, não só para a população de São Paulo, mas para a população do Brasil, já que muitas pessoas tomaram a vacina Corona Vac em todo o país.

Por fim, na sua opinião, qual o papel da paradiplomacia no desenvolvimento dos estados e cidades do Brasil? 

Bem, essa é uma pergunta de, digamos assim, um milhão de dólares, principalmente para nós em um país em desenvolvimento. A sua pergunta me permite retomar uma questão que eu falei no início, que é sobre a Constituição de 1988 e as autonomias conferidas aos estados e municípios através do princípio da descentralização. Se bem é certo que a descentralização foi muito bem realizada, do ponto de vista político e jurídico, do ponto de vista econômico ela não se completou, ela não se efetivou. Por quê? O Brasil é um país muito desigual do ponto de vista econômico, nós temos grandes nichos de concentração. 

Portanto, nós temos uma clivagem econômica, que também foi chamada pelo geógrafo francês Jacques Lambert de “Os dois Brasis”, ou seja, um Brasil rico e o outro pobre, um moderno e o outro atrasado. Se nós pegarmos essa expressão e caminharmos até hoje, ainda conseguimos usar essa categoria, na medida que temos essa problemática impressionante da desigualdade. O índice Gini do Brasil é um dos mais perversos do mundo.  

E o que a paradiplomacia tem a ver com isso? Na medida que estados e municípios podem, através da paradiplomacia, atrair recursos econômicos que, se for o caso de um município, o próprio estado não faz, ou a União não faz. 

Do ponto de vista dos interesses locais, quando falamos da política externa, falamos do interesse nacional, que precisa ser identificado e analisado, e quem faz isso geralmente são as elites. Existe todo um debate sobre o que viria a ser o interesse nacional, e nós defendemos hoje – eu pessoalmente, assim como meus colegas da UFABC – que a definição desse interesse precisa ser o mais democrática possível, e não apenas baseado no interesse das elites, sejam elas industriais, agrícolas, etc. Mas, na maior parte dos países, são as elites que definem o interesse nacional, mesmo em países desenvolvidos. A democratização da política externa é um processo em curso, ainda muito lento. O fato é que nós também podemos pensar no interesse local que possa projetar a política externa local. E eu defendo, inclusive no livro, que a política externa local seja amparada em um conselho de relações internacionais local, que deve ser criado no município. Já existem nas cidades conselhos para criança e adolescente, conselho para saúde, para a educação… Por que não criar um conselho para as relações internacionais? Eu defendo isso, um conselho participativo. Nós sabemos que muitos municípios possuem dificuldades orçamentárias, tem poucos Conselhos pois não tem como manter, mas eu penso que na relação custo-benefício você criar um conselho local para atrair investimentos estrangeiros tem um retorno importante do ponto de vista orçamentário.

Por fim, a depender do projeto – mesmo se houver diferenças político-partidárias – pode sim acontecer cooperação. A paradiplomacia também pode ser exercida em diferentes ambientes, ambientes mais ‘friendly’ entre os atores políticos e ambientes mais adversos, que é o que nós temos hoje. Então só para fechar a resposta para a sua pergunta, eu penso que a Paradiplomacia é muito importante para atrair investimentos e também pode ser muito importante na questão dos ODS, por exemplo, que são a grande plataforma de desenvolvimento sustentável no mundo, e que tem um caráter muito voltado para os poderes locais. Não só o ODS 11 que trata sobre cidades sustentáveis, mas também outros sobre a água, gênero, educação, saúde, mudança climática, todos possuem uma transcendência grande para o poder local. Então, eu sou um grande defensor de que cidades pequenas possam ter paradiplomacia. 

Entretanto, eu também defendo que isso possa ser feito através de Consórcios, e não necessariamente individualmente. Por exemplo, se você tiver três ou quatro cidades como fizeram os governadores do Nordeste – Consórcio Nordeste – que se reuniram através de um consórcio que diminui os custos e aumenta os benefícios para todos, por quê não praticar essa paradiplomacia através de consórcios? Nós sabemos que é difícil, pois se houver prefeitos de diferentes partidos, nem sempre é possível um acordo. E se não for possível o acordo, o jeito é tentar fazer de maneira individual: uma equipe enxuta, às vezes você tem ali duas pessoas trabalhando em uma assessoria pequena ligada ao gabinete do prefeito. O Conselho, eu acho que isso é realmente fundamental, nós precisamos trabalhar muito a criação de Conselhos municipais, de cooperação internacional, de relações internacionais, que congreguem o setor privado, a universidade, a comunidade científica, sindicatos, as indústrias, o poder público. Ou seja, um lugar onde todos possam sentar em uma mesa e se perguntar “Como é que nós iremos projetar internacionalmente nossa cidade? Não estamos vendo isso acontecer.” Isso não é um fenômeno que nós podemos dizer que seja global, claro que nos países desenvolvidos isso ocorre com mais frequência, mas nós ainda estamos em um momento de começar a fazer isso. E no Brasil nós não começamos, nem nas grandes cidades temos esses Conselhos. Então eu acho que essa é uma bandeira que precisamos trabalhar: Conselhos municipais. Enfim, eu acho que temos um longo caminho a ser percorrido da Paradiplomacia em prol do desenvolvimento local.

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