Professor da UFPB fala sobre a questão da fome nas relações internacionais

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Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB. Professor do Departamento de Relações Internacionais e. Doutor em Ciência Política pela Unicamp, Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), Graduado em Relações Internacionais pelo Unibero. Atua como pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da UFPB. Tem interesse nas áreas de Economia Política Internacional, Política Internacional e Política Externa, com foco no Brasil e nos Estados Unidos. Interessa-se, especificamente, por questões agrícolas e de segurança alimentar nas Relações Internacionais. Vencedor do Prêmio CAPES de Tese 2015, área de Ciência Política e Relações Internacionais. Coautor, com Tullo Vigevani e Filipe Mendonça, de “Poder e Comércio: a política comercial dos Estados Unidos” (Ed. Unesp, 2018), vencedor do prêmio de Melhor livro científico da ANPOCS em 2019.

Nesta edição do IDeF iremos trabalhar com o tema da fome e da pobreza, que coincide justamente com a linha de pesquisa que o senhor vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Poderia comentar, resumidamente, como surgiu o interesse de pesquisar a questão da fome nas relações internacionais?

Esse interesse surgiu quando eu estava fazendo minha pesquisa de doutorado, eu estava pesquisando sobre o protecionismo agrícola nos Estados Unidos buscando entender o porquê de um país tão rico protegia o setor agrícola, sendo que o seu setor agrícola é menos de 1% do PIB e menos do 1% da força de trabalho. Ou seja, não é uma força econômica poderosa. Então, de onde vinha esse desejo de proteger o setor agrícola nos Estados Unidos? Uma das hipóteses era que os Estados Unidos protegiam o seu setor agrícola para uma eventual guerra ou tensão internacional para não ficar dependente da importação de alimentos. Logo, ele protegeria seu mercado por uma questão de soberania alimentar. Depois, a minha pesquisa mostrou que essa hipótese não era correta, mas eu fiquei apaixonado pelo conceito de soberania alimentar, que eu nunca tinha visto até aquele momento.

Em 2012, eu juntei um grupo de alunos, para fazer um círculo de estudos sobre a questão da fome a partir dos conceitos de segurança e soberania alimentar, e aí começou o FomeRI. O grupo completou dez anos este ano, no dia 8 de março, que foi a data da nossa primeira reunião. A partir desse momento nós começamos a perceber que nas relações internacionais do Brasil a fome não era um tema relevante. Então estudava-se a guerra, estudava-se o comércio, estudava-se a diplomacia, mas a fome, que maltrata tantas pessoas no nosso país, não era um tema estudado. Nosso grupo começou a dar ênfase a isso: o que a fome tem a ver com as relações internacionais. E foi assim que nosso trabalho começou.

Com a pandemia da Covid-19, o cenário político mundial se viu de frente a mais um desafio: a crise sanitária. Na sua opinião, como a pandemia agravou a situação de pessoas que se encontram em insegurança alimentar? No Brasil, esse é um fenômeno mais recorrente?

A pandemia agravou a fome no Brasil e em outros países, inclusive países ricos. Mas ela não causou a fome. O vírus ataca as pessoas, mas a pandemia ataca as sociedades. Então existem sociedades que decidem proteger seus cidadãos apesar da pandemia. Países tão diferentes como Vietnã, Nova Zelândia, Coréia do Sul, Austrália e China, que são países capitalistas e socialistas, não enfrentaram esses problemas sociais graves, inclusive a fome, porque eles colocaram a proteção aos cidadãos em primeiro lugar. Já países como Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Argentina, por diversos motivos, observaram um crescimento exponencial da fome. 

Portanto, a fome já era um problema em países como Brasil, Argentina, Estados Unidos e Reino Unido, que são países muito diferentes, e esse problema foi seriamente agravado pela pandemia. Sendo assim, você me perguntou se esse é um problema recorrente no Brasil. A história do Brasil é uma história de fome. Nosso povo, ele foi socialmente formado como um povo faminto. Desde que o nosso país foi formado, parcelas enormes da nossa população são mantidas em situação de fome. Um dos motivos para isso é que se a nossa população comer tudo aquilo que precisa, não haverá produtos para serem exportados no mercado internacional. Logo, se a área que é destinada à produção de commodities para exportação, fosse destinada para produzir o que o povo precisa comer, dificilmente esse setor exportador iria conseguir exportar. 

Sendo assim, a história do nosso povo é uma história de miséria em meio a abundância. Isso tem a ver com a posição do nosso país nas relações internacionais como um grande exportador de commodities agrícolas, desde quando foi colonizado por Portugal até hoje. Só não houve fome grave no Brasil no começo do século 21, até onde os dados mostram. Portanto, não é que a fome é um problema recorrente no país. A fome é uma característica normal do Brasil. É anormal quando as pessoas mais pobres não estão passando fome. 

A Agenda 2030 apresenta em seus 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) práticas que podem ajudar a preservar a biodiversidade ambiental, assim como a melhora da qualidade de vida da população. O ODS 2, “Fome Zero”, estabelece que “Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano.” O senhor acredita que, no cenário internacional, estamos avançando quanto à conquista desse objetivo?

Em primeiro lugar é importante entender que a fome é um problema complexo e multidimensional. Então a fome não é simplesmente ausência de alimento, a fome ela não é simplesmente sinônimo de pobreza, porque as pessoas podem ser pobres e não passar fome nunca, por exemplo. As pessoas podem ter algum dinheiro, e mesmo assim ainda serem famintas do ponto de vista nutricional. Elas podem ser obesas, diabéticas, podem ter anemia e outros diversos tipos de doença. Assim, a fome é um problema complexo, e por ser de tal complexidade ela precisa ser enfrentada em diversas frentes. Temos a frente imediata, que seria dar comida para as pessoas que estão com o estômago vazio agora; e temos a frente de médio/longo prazo, que é construir a capacidade das pessoas terem acesso a alimentos saudáveis. Logo isso significa um maior número de empregos, mas também uma maior disponibilidade de alimentos saudáveis. Água saudável, plantações saudáveis, trabalhadores saudáveis e assim por diante. O Objetivo do Desenvolvimento Sustentável aponta nessa direção, mas ele ainda é muito calcado no elemento da pobreza. Então esse acordo internacional, ele entende, que acima de tudo diminuindo a pobreza as pessoas vão conseguir se alimentar melhor. E isso é verdade por um lado. Mas por outro lado, isso não aponta para a solução definitiva do problema, porque os ODS não atacam a questão da reforma agrária. Desse modo, eles não defendem a reforma agrária como redistribuição de terra e uma mudança radical para uma produção agroecológica. E nós sabemos que quando existem latifúndios e grandes propriedades de terra, normalmente existe monocultivo. E o monocultivo só é viável com agrotóxicos. Logo, com a presença de agrotóxicos, o lençol freático é contaminado – além da contaminação dos próprios alimentos – e muitas vezes o agrotóxico disperso pelo ar é levado pelo vento e atinge as comunidades que não tem nada a ver com aquela plantação. Portanto, crianças são contaminadas, inclusive o Piauí possui uma taxa muito elevada de mães com fetos defeituosos por causa do agrotóxico disperso no ar. 

Em síntese, os ODS, na minha opinião, não oferecem uma solução definitiva para o problema. É uma solução parcial. Ou seja, não é de se jogar fora, mas nós precisaríamos de algo muito mais calcado efetivamente na preocupação com a saúde das pessoas, ainda que isso gere prejuízos para alguns setores econômicos.

De que forma a promoção de políticas públicas, principalmente por parte de governos locais, pode ajudar no combate à fome e à pobreza?

Isso é extremamente importante, as políticas públicas locais vão depender dos locais. Uma cidade tão urbana como São Paulo tem necessidades diferentes de uma capital como João Pessoa ou de uma cidade como Guarabira (PB). Em primeiro lugar, é preciso que o poder público ouça as comunidades. Os conselhos de segurança alimentar e nutricional são fundamentais. Ouvir as pessoas, os acadêmicos e as ONGs também é fundamental para saber quais são os problemas. Uma vez reconhecidos esses problemas, é preciso pensar políticas públicas de ataque imediato para as pessoas que estão com estômago vazio, como restaurante popular, merenda nas escolas, alimentação em hospitais, presídios e outros equipamentos públicos desse tipo e, por fim, políticas de médio/longo prazo. Políticas como o antigo Bolsa Família – hoje auxilio Brasil – são importantes pois disponibiliza dinheiro para que as pessoas comprem aquilo que achem importante. Também são importantes programas de aquisição de alimentos, pois conferem crédito para comprar produtos da agricultura familiar. Um preço justo para a agricultura familiar.

Além disso, também vale mencionar políticas que regulam os alimentos que devem ser consumidos pela população. Por exemplo, adquirir refrigerante na escola, pode resultar em doenças graves como diabetes, doenças do coração, entre outros. Então existem políticas públicas que proíbem a distribuição desses tipos de alimentos que são prejudiciais à saúde. Essas políticas visam tanto a saúde da criança como também a criação de um hábito em torno de opções mais saudáveis, que são as frutas frescas e os produtos minimamente processados em contraposição aos ultraprocessados. A criança pode até não gostar naquele momento, mas sabemos que ao longo da vida ela será mais saudável. E ela sendo mais saudável, ficando menos doente, dará menos gastos para o orçamento público. Além disso, sua família ficará menos triste, ela irá faltar menos na escola, entre outros. Sendo assim uma alimentação saudável, quando você me pergunta das políticas públicas, ela deve ser pensada de uma forma muito multidimensional, porque é um processo que se inicia desde o momento que temos uma mãe com um filho no colo que está morrendo de fome, e vai até a vida adulta dessa criança. 

Os países que são grandes potências e que prezam pela qualidade da sua nação como um elemento de poder investem na saúde pela via da alimentação. É o que faz o Japão, por exemplo, que tem uma alimentação saudável. É o que a União Europeia está fazendo banindo produtos com agrotóxicos e favorecendo produtos que são produzidos perto do local de consumo. Entretanto, há países que não estão preocupados com isso. A Rússia, por exemplo, está desenvolvendo o mesmo modelo alimentar brasileiro, baseado em ultraprocessados e monocultura. Assim como os Estados Unidos, que possui a maior taxa de pessoas obesas do mundo, inclusive crianças, o número de obesidade infantil é terrível por lá. E o próprio Brasil também, que avançou no começo do século 21 nesse tipo de legislação, e agora estão querendo regredir isso. Existe no Congresso uma disputa para reformar as leis que garantem que 30% da alimentação escolar venha de alimentos da agricultura familiar. Se essa lei for efetivamente reformada, começará a aparecer bolacha e manteiga de volta na merenda escolar. Isso aconteceu no Paraguai, onde o país aprovou uma lei parecida com a lei brasileira, de transformar alimentação escolar em um ambiente de promoção de saúde e de criação de hábitos saudáveis. Contudo, após o golpe contra o Presidente Fernando Lugo, o novo grupo que assumiu o poder no Paraguai reformou as leis e o país voltou a ter bolacha, manteiga e achocolatado como lanche para as crianças. 

Portanto, não é uma batalha ganha. Isso mexe com interesses econômicos muito poderosos, então é uma disputa em andamento. Logo, as políticas locais são importantes e elas serão tão mais eficientes quanto mais o governo conversar com as pessoas daquela localidade. É necessário atender também o hábito regional das pessoas, pois a comida, além de estar relacionada à saúde, é um momento espiritual também. Dessa forma, as pessoas realizam sua espiritualidade, no sentido da sua identidade mais profunda, da comunhão com a sua comunidade, por meio da alimentação. Se você disser que uma pessoa está com fome logo ela deve comer qualquer coisa, isso é uma agressão contra aquele indivíduo. Às vezes ela pode estar com fome e nem vai conseguir comer de tão agressivo que aquele alimento pode se tornar para ela. Sendo assim, é preciso ter muito diálogo com as populações para saber como lidar com esse problema.

Por fim, na sua opinião, a Paradiplomacia pode ser usada como um instrumento de combate à insegurança alimentar?

Com certeza. A política pública não surge do nada, o formulador de política pública precisa conhecer experiências que deram certo. Então através de um programa de cidades-irmãs, por exemplo, ou estados-irmãos, a Paraíba poderia buscar experiências bem sucedidas de estados, regiões ou cidades que possuem uma população similar, um orçamento similar, um clima similar e verificar como eles conseguiram resolver seus problemas. Por exemplo, você tem cidades de clima quente parecido com o nosso no Oriente Médio, nos Estados Unidos, cidades africanas também. Logo, deve-se questionar: o que esses países estão fazendo com pouco ou muito dinheiro que ajuda a melhorar a situação alimentar em sentido amplo? Essa é uma possibilidade.

Outra possibilidade é o estado ou a cidade de João Pessoa, buscar financiamento e cooperação técnica internacional para resolver esses problemas. Assim sendo, muitas vezes numa cidade pequena como Areia (PB) e Alhandra (PB) as pessoas podem até ter interesse em fazer uma horta agroecológica, mas elas não possuem o conhecimento técnico ou não têm o capital necessário para fazer isso. Quanto ao conhecimento técnico, o Brasil ainda é uma potência em recursos humanos e ciência da tecnologia na área agroalimentar. Mas às vezes falta o dinheiro. E considerando que o dólar está tão alto, esse é o momento ideal para buscar doadores internacionais, pois com o mesmo dinheiro para eles, eles geram um impacto muito maior aqui. Ainda assim, o Estado brasileiro, principalmente no governo atual, não possui nenhum interesse em combater a fome por meio da cooperação internacional. Mas os estados e os municípios podem fazer isso. Portanto, seria importante, inclusive por meio do Consórcio Nordeste, juntar forças para ir ao exterior, seja no novo Banco do Desenvolvimento capitaneado pela China, seja na Agência Japonesa de Cooperação Internacional ou na Organização dos Estados Americanos, buscar financiamento para desenvolver um projeto.

IDeF: Obrigada pelos comentários! Gostaríamos de deixar também um espaço para que você possa comentar livremente sobre seu projeto e suas publicação:

Em primeiro lugar, eu acho que a universidade deve ser um espaço de empatia. O estudante público tem uma diferença do estudante de escola particular. Nós estamos aqui, como professor e estudante, não apenas para fazer uma relação que acabe na sua titulação, no seu diploma. Nós estamos aqui para entregar um produto que melhore a sociedade. Portanto, a universidade deve desenvolver uma empatia com as pessoas, e isso já é feito em muitas áreas, mas a área de Relações Internacionais no Brasil ainda não tem uma empatia grande com a questão da fome. E eu digo isso pois são poucas as publicações que focam na fome, apesar desse ser a principal causa de doenças no nosso povo e uma das principais causas de morte ao longo da história no nosso país, assim como uma grande responsável pela separação de famílias. Às vezes nós estudamos a separação de famílias de refugiados no Oriente Médio, que estão cruzando o atlântico e se separando. Entretanto, há muitas famílias separadas no Brasil pela fome, sobretudo de nordestinos que saíram de suas casas e se espalharam pelo país, que foram para a Amazônia, para o sudeste.

Portanto, nós precisamos ter mais empatia com a questão da fome na área das relações internacionais, sem menosprezar as outras áreas, colocando isso como uma prioridade cidadã. No FomeRI é isso que nós tentamos fazer, ainda de maneira muito tímida. Nosso grupo está aberto para qualquer um que deseje participar. Por fim, há um livro gratuito chamado “Segurança Alimentar e Relações Internacionais”, publicado pela UFPB, e que está disponível para download livre. 

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Livro Segurança alimentar e relações internacionais, disponível para download gratuito: http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/317

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