Segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), o estado de Minas Gerais se encontra entre as unidades federativas com maior número de trabalhadores e trabalhadoras resgatados de situação análoga ao trabalho escravo. No ranking de resgate nacional, Minas Gerais se encontra em 4º lugar em números absolutos de resgates no país (3.711). Além do mais, o estado também apareceu em 4º lugar no número de resgate de crianças e adolescentes do trabalho escravo. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE de 2017, Minas Gerais aparece entre os quatro estados do país que mais empregaram crianças e adolescentes menores de 14 anos em estabelecimentos agropecuários com parentesco com o produtor.
Tendo em vista esses dados e também a grande relevância da cafeicultura como ativo comercial para Minas Gerais, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou em 2020 um projeto de Prevenção e Enfrentamento ao Trabalho Escravo e Infantil no Estado de Minas Gerais. O projeto visa contribuir para a prevenção e enfrentamento ao trabalho infantil e escravo na cadeia produtiva do café em Minas Gerais, já que o café representa o principal produto agrícola mineiro e se espalha por diversas regiões do estado. Por meio da implementação de iniciativas que ajudem a diminuir a vulnerabilidade de trabalhadores e crianças ao trabalho escravo e ao infantil, o objetivo principal do projeto é contribuir para que os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho (PDFT) sejam assegurados e promovidos na cadeia produtiva do café em Minas Gerais. As ações do projeto estão estruturadas em três eixos estratégicos.
O primeiro, diz respeito à gestão de conhecimento com a criação de uma base de conhecimento sobre trabalho escravo e infantil no estado. O segundo eixo visa gerar a sensibilização e informação dos atores sociais sobre a necessidade de melhoria das condições de trabalho na cadeia produtiva do café. E, por fim, o fortalecimento da rede de prevenção e assistência às vítimas e vulneráveis ao trabalho escravo e trabalho infantil. Com base na experiência da OIT no apoio técnico fornecido para criação do Fluxo Nacional de Atendimento à Vítima de Trabalho Escravo, o projeto busca promover a adaptação do Fluxo ao contexto de Minas Gerais. Após a estruturação do fluxo, o projeto buscará implementar ações-piloto em municípios selecionados para fortalecer a capacidade institucional.
O IDeF conversou com a coordenadora responsável pelo projeto, Maria Cláudia Falcão, para entender melhor o papel desenvolvido pela OIT e como se dá a implementação das estratégias do projeto. Maria Cláudia trabalha na OIT como Coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho.
Como se sabe o trabalho escravo e infantil é uma realidade em muitos estados do Brasil. Como foi estruturada a parceria com o Estado de Minas? Teve algum envolvimento do Governo Federal nesse trabalho?
Maria Cláudia (OIT): Esse projeto é feito a partir da parceria da OIT com o Ministério Público do Trabalho, abrangendo diversas áreas e eu sou responsável pela área de trabalho escravo. Começamos esse trabalho porque o Ministério Público possuía um interesse muito grande em combater o trabalho infantil e o trabalho escravo nas produções de café no estado de Minas Gerais. Esse foco ocorre principalmente porque, analisando os dados nacionais de resgates de trabalho escravo, percebe-se que o estado com maior número de trabalhadores resgatados, nos últimos anos, é Minas Gerais e a maioria vêm das plantações de café. Então, o Ministério Público faz parte dessa política e realiza os resgates desses trabalhadores com a fiscalização do trabalho.
Ademais, é importante destacar que a OIT possui uma estrutura tripartite. Isso significa que dentro da administração da OIT participam empregadores, trabalhadores e governo. Sendo essa uma característica única da OIT dentro do sistema das Nações Unidas. Então, pode-se dizer que, majoritariamente, os projetos da OIT irão abarcar essas três partes. Assim, a OIT nunca começa a fazer uma ação ou um projeto sem antes consultar ou avisar esses parceiros.
Então, para estruturar esse projeto, fomos até o estado de Minas Gerais, conversamos com o governo estadual, apresentamos o projeto e passamos a formular as ações sempre em parceria com eles. Sempre buscamos fomentar esse diálogo com o governo estadual e nunca chegamos com uma fórmula pronta até o governo, até porque a OIT não possui a capilaridade e expertise necessárias para formular tudo sozinha. Após isso, passamos, em parceria com o governo estadual, a avisar os sindicatos dos trabalhadores locais e as empresas de café sobre o projeto. Em relação ao governo federal, a missão da OIT é apoiar os seus constituintes e todos os nossos projetos também contam com o apoio do Governo Federal. Nesse projeto, especificamente, o governo federal também vem nos ajudando muito na implementação das políticas públicas de combate ao trabalho infantil em alguns municípios selecionados do estado de MG, já que nem sempre os municípios possuem todas as políticas públicas de combate ao trabalho infantil e ao trabalho escravo implementadas.
Foram estipulados 3 objetivos específicos para o projeto. Gostaríamos de fazer algumas perguntas sobre esses objetivos. Primeiro, quais resultados a OIT conseguiu obter para atingir esses objetivos até o momento? Sabemos que o projeto foi iniciado em 2020, por acaso, o momento pandêmico prejudicou esses resultados?
Maria Cláudia (OIT): A pandemia teve total impacto no projeto. Até estendemos o prazo do projeto para dezembro de 2024, porque só conseguimos realizar as ações que podiam ser feitas a distância. Então, esse primeiro resultado abrangendo a base de conhecimento (que é algo que dá para fazer a distância) já foi realizado e estamos começando a entregar alguns produtos dessa primeira parte. Porém, outros objetivos que dependiam de uma ação presencial acabaram sendo afetados. Então, as ações nos municípios e implementações de políticas públicas não conseguiram ser feitas a distância. Não queríamos nos enganar e achar que daria para fazer isso a distância. Por isso, decidimos, em acordo com o Ministério Público do Trabalho, prorrogar o prazo e vamos começar a implementar até a parte de campo agora em 2023, que seriam as promoções de políticas públicas, realizações de campanhas de conscientização dos trabalhadores acerca dos seus direitos e informações sobre os canais de denúncia, entre outros.
Os indicadores e informações contidas na base de dados formulada nessa primeira etapa ficarão disponíveis só para os gestores públicos ou também para a sociedade civil?
Maria Cláudia (OIT): A OIT ainda vai disponibilizar tudo. Estamos concluindo agora essa primeira etapa para conseguir entregar três grandes produtos. O primeiro é uma fotografia de análise situacional da produção de café no estado de Minas Gerais, mostrando uma parte quantitativa como também qualitativa. A Fundação João Pinheiro foi a campo e entrevistou os trabalhadores. O segundo produto é uma ferramenta, que toda a sociedade poderá acessar, com uma série de dados sobre as funções de trabalho. E nessa ferramenta vão ter desde dados administrativos, primários, secundários, econômicos, sociais, enfim… Diversos dados importantes para conseguir analisar o trabalho escravo e trabalho infantil em Minas Gerais. E, por fim, o terceiro produto é uma outra ferramenta que seja capaz de identificar, através de alguns critérios pré-estabelecidos, quais são as áreas mais vulneráveis da ocorrência de trabalho infantil e de trabalho escravo em Minas Gerais. É uma ferramenta bastante interessante para que seja possível compreender o cenário do estado e também para conseguir priorizar alguns municípios e auxiliar na fiscalização e no planejamento. Assim, a gente espera estar com esses três produtos entregues até a primeira metade de 2023.
Vimos que, com base na experiência da OIT no apoio técnico fornecido para criação do Fluxo Nacional de Atendimento à Vítima de Trabalho Escravo, o projeto busca promover a adaptação do Fluxo ao contexto de Minas Gerais. Essa etapa conseguiu ser feita ou ainda vai ocorrer nos próximos anos?
Maria Cláudia (OIT): Também já conseguimos concluir essa etapa, porque foi algo que pôde ser feito virtualmente. Nós da OIT fomos até o Comitrate (Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais), que é um comitê de combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo e liderado pela Assistência Social do Estado de Minas Gerais, para propor a adaptação do fluxo de denúncias à realidade do estado. Então, convocamos reuniões com um grupo de trabalho (GT) dentro desse comitê estadual para estabelecer qual seria o fluxo em Minas Gerais. Porque, apesar de parecer algo simples, de vez em quando pode haver alguma complicação. O resgate de um trabalhador, desde a denúncia até o encaminhamento de quando ele é resgatado, possui a participação de uma série de instituições e, às vezes, nesse processo, pode haver um problema em que uma instituição pode “passar por cima” da outra. Por isso, buscamos organizar o passo a passo desse fluxo para não haver nenhum problema e o resgate ocorrer da maneira mais rápida possível, garantindo a rápida restituição de direitos desse trabalhador. Além disso, com a criação desse fluxo, se alguma instituição “fura” a fila e age antes do seu tempo, se torna mais fácil identificar e chamar a atenção dessa instituição para garantir o bom funcionamento do fluxo.
Como vocês planejam realizar as ações-piloto no Estado?
Maria Cláudia (OIT): Para fazer as ações de implementação de políticas públicas no Estado, nós selecionamos três municípios grandes produtores de café: Patrocínio, Campos Altos e Ibiraci. Agora em 2023, iremos até esses municípios para conhecer melhor a situação. Vamos checar, por exemplo, se possuem o PETI (Programa de Erradicação ao Trabalho Infantil) implementado; cursos de qualificação profissional; portais para receber as denúncias; quais as orientações das assistênciais sociais municipais em casos de resgate de trabalhadores; entre outros.
A partir dessas ações-piloto, a OIT realiza sugestões de políticas públicas para os gestores?
Maria Cláudia (OIT): Sim, se nós possuímos tempo e recursos, sempre buscamos fazer propostas e fazer um diálogo com os gestores. Mas as nossas propostas nunca surgem do nada. O Brasil é reconhecido internacionalmente pelas suas políticas de combate ao trabalho infantil e trabalho escravo. Então, a nossa ideia é sempre pegar essas políticas que existem e ajudar a implementar, já que muitos municípios possuem uma falta de capacidade de implementação. Nós conversamos também, se preciso, com os ministérios aqui em Brasília para que deem prioridade a certos municípios e os visitem. O nosso papel mesmo é “pegar na mão”, acompanhar o processo e capacitar para que os municípios consigam implementar essas políticas.
Uma vez que esse projeto for concluído, você acha que a OIT pode buscar expandir essa iniciativa para outros estados brasileiros que também sofrem bastante com altos índices de trabalho infantil e escravo?
Maria Cláudia (OIT): Sim. Nosso objetivo principal sempre é esse. Temos um escritório relativamente pequeno, então buscamos sempre realizar uma sistematização de boas práticas. Então, se o projeto dá certo, nós fazemos essa sistematização ou até se conseguimos mais recursos, a OIT busca levar essa iniciativa para outros municípios, estados e cadeias produtivas. Nesse processo, nós, obviamente, fazemos as devidas adaptações, já que nenhum contexto é igual ao outro.
No que tange a cadeia produtiva do café no estado de Minas Gerais, a partir da coleta dos dados, quais foram aspectos mais recorrentes sobre o trabalho infantil e escravo?
Maria Cláudia (OIT): Uma coisa interessante que nós percebemos é que precisa trabalhar com toda a cadeia. Isto é, com todos os atores que trabalham dentro dessa cadeia. Desde o produtor, que está numa ponta, até a grande empresa. Todos esses atores possuem responsabilidade sobre essa cadeia. A OIT notou que a grande maioria das violações estão ocorrendo na ponta dos produtores ou pequenos produtores. Então, o que a gente deseja é que essa cadeia seja um pouco mais equilibrada e que as grandes empresas que estão do outro lado responsabilizem-se por garantir que existem formas inaceitáveis de trabalho em todas as etapas de produção do café, não somente dentro do seu ambiente de trabalho. Se visitarmos, por exemplo, as grandes fábricas de café, elas terão as menores taxas de violações ou nenhum problema sequer. Mas, ainda assim, essas grandes empresas possuem responsabilidade sobre aquele pequeno produtor que está do outro lado da cadeia e se encontra em uma situação degradante de trabalho. E como grandes empresas podem participar disso? Sempre fomentando também as regras, mas também investindo nessas comunidades. Tudo isso ajuda a equilibrar a cadeia produtiva do café, em que o pequeno produtor é quem fica com a parte mais pesada do trabalho, porém recebe a menor remuneração.
Então, para equilibrar, nós precisamos da participação das empresas e também dos governos federal, estadual e municipal. Porque se não houver política pública, não há como a questão ser resolvida. As grandes empresas podem ajudar na criação de cursos profissionalizantes, no fomento do debate à erradicação ao trabalho infantil, por exemplo, mas só por um curto período, pois elas não conseguem realizar o papel do governo. Então é dever do estado ajudar na garantia dos direitos dessas pequenas comunidades através da implementação dessas políticas. Os trabalhadores também são uma parte chave, pois, se eles acreditam que a situação em que estão trabalhando é normal e desconhecem os seus direitos, eles não denunciam e a situação pode continuar desse jeito. Atualmente, só conseguimos realizar o resgate de um trabalhador em situação de trabalho escravo por denúncia, pois os fiscais não conseguem estar em todos os locais para vigiar dado o tamanho do Brasil. Além disso, toda a sociedade tem um papel fundamental, ficando alerta aos sinais de trabalho escravo e trabalho infantil para denunciar; e também buscando consumir de forma mais consciente e apoiar marcas que possuem consciência social e uma cadeia produtiva justa. Por isso, nós percebemos que é preciso trabalhar com todos os atores da cadeia para conseguir torná-la mais justa e equilibrada.
Por fim, você teria sugestões para outros gestores estaduais e municipais que também estão atuando para prevenir e enfrentar o trabalho escravo e infantil?
Maria Cláudia (OIT): Uma coisa muito importante é que os gestores priorizem esse tema nas suas agendas, definindo que é algo que eles não querem que ocorra dentro dos seus municípios. A partir do momento que os gestores possuem isso como um objetivo muito claro, existem uma série de políticas que o Governo Federal disponibiliza que ajudam a combater o trabalho infantil e o trabalho escravo. Então, o ideal é que os gestores procurem o Governo Federal, analisem esse rol de políticas e vejam o que falta ou não ser implementado. Outra coisa também são os recursos disponibilizados para implementação, ver qual o orçamento existente e quais as possibilidades de financiamento municipal, pois sabemos que, muitas vezes, o orçamento oferecido pelo governo federal pode não ser suficiente. Por fim, além da lista de políticas e de um orçamento claro, é preciso que os gestores tenham em mente que o combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil requer a articulação entre diversas áreas.
Porque, no que diz respeito ao trabalho infantil, por exemplo, apenas o PETI não é capaz de ajudar na sua erradicação. Nesse sentido, é preciso ter uma preocupação com a educação infantil envolvida. É preciso ter escolas, como também mobilizar os professores e sensibilizá-los às causas do trabalho infantil para que eles possam identificar e conversar com a família ou até realizar uma denúncia no Conselho Tutelar, no CREAS (Centro de Referência Especializado em Assistência Social) ou no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Mas, se ele é um professor que não é sensibilizado para essa causa, ele não irá se atentar aos sinais e só irá dar falta na criança. Outro ator importante também, por exemplo, é o agente de saúde. Esses agentes possuem uma capilaridade enorme, pois são os únicos que conseguem entrar dentro das casas e acompanhar as famílias. De novo, se eles também forem sensibilizados, eles também conseguem identicar.
Por isso, é preciso ter o município como um todo, os agentes públicos e esse trabalho intersetorial muito bem conectados. Então, os gestores precisam montar um plano abarcando quais os objetivos, quais políticas o município possui ou não, qual o orçamento e montar um comitê com essas diferentes áreas. Também é importante que os gestores consigam sair um pouquinho de dentro das suas caixinhas, não se apoiando somente na assistência social, pois, como eu disse, só a assistência social ou só a área de trabalho não resolvem o problema. É preciso que os gestores realizem um trabalho intersetorial entre essas diversas partes.
REFERÊNCIAS:
OIT. Prevenção e Enfrentamento ao Trabalho Escravo e Infantil no Estado de Minas Gerais. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/programas-projetos/WCMS_854451/lang–pt/index.htm>. Acesso em: 05 jan 2023.