A pobreza menstrual é um problema global que afeta muitos países, especialmente aqueles com populações de baixa renda. O acesso inadequado a produtos menstruais, instalações sanitárias e cuidados médicos durante a menstruação afeta pessoas com útero, mas é particularmente pronunciado entre adolescentes que estão começando a menstruar e mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Em alguns países, a menstruação ainda é considerada um tabu, e discuti-la é culturalmente desencorajada. Para lidar com o tema, muitos governos tomaram medidas para fornecer produtos menstruais e melhorar o acesso a instalações sanitárias e cuidados médicos. A Escócia, se tornou o primeiro país do mundo a fornecer produtos de higiene menstrual gratuitamente para todas as mulheres e meninas em escolas, universidades e outros locais públicos. Seu exemplo se difundiu e políticas semelhantes ou inspiradas começaram a ser debatidas e implementadas em outros contextos nacionais. Nos EUA, a Califórnia foi o estado pioneiro na aprovação de uma lei desse tipo. Em 2017, a legislação já estabelecia que escolas públicas com estudantes do 6º ao 12º ano que vivem em situação de pobreza distribuíssem produtos de higiene menstrual gratuitamente. A lei foi aprovada após a constatação de que muitas alunas de famílias de baixa renda estavam perdendo dias de aula por não terem acesso a absorventes e outros produtos de higiene menstrual.
No Brasil, o tema ganhou destaque nos últimos anos, por ser um problema crescente que afeta pessoas que não têm acesso a produtos de higiene menstrual adequados. De acordo com dados da Unicef, cerca de 18% das meninas e mulheres brasileiras entre 12 e 49 anos de idade têm dificuldades para comprar produtos de higiene menstrual. Além disso, muitas mulheres usam alternativas inadequadas, como panos, jornais e papel higiênico, que podem causar irritação, infecções e outros problemas de saúde. A falta de recursos financeiros, a desigualdade de gênero e o estigma em torno da menstruação são os principais fatores que contribuem para a pobreza menstrual no país.
Com foco nas pessoas em condição de vulnerabilidade social, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou em março deste ano o decreto que cria o Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual. O programa beneficiará cerca de 8 milhões de pessoas com a oferta gratuita de absorventes pelo SUS.
Além disso, algumas organizações estão trabalhando para combater a pobreza menstrual no Brasil, fornecendo produtos de higiene menstrual gratuitamente ou a preços acessíveis, além de promover a conscientização sobre a importância da dignidade menstrual. No Rio de Janeiro, o Projeto de Lei 2761/2019, que determina a inclusão de absorventes higiênicos nas cestas básicas distribuídas pelo Governo do Estado a famílias em situação de vulnerabilidade, foi elaborado e apresentado pelo ex-deputado estadual Renan Ferreirinha em conjunto com o movimento Girl Up Elza Soares. A lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2019 e sancionada pelo governador em julho de 2020. O Estado do Rio de Janeiro se tornou, assim, o primeiro do país a garantir a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para famílias em situação de vulnerabilidade.
No entanto, ainda há muito a ser feito no país para garantir que todas as pessoas que menstruam tenham acesso adequado a produtos de higiene e possam viver com dignidade e saúde durante seu ciclo menstrual. Cabe aos governos e organizações trabalhar para promover a igualdade e o empoderamento de gênero, o que pode ajudar a reduzir o estigma e a discriminação associados à menstruação. Isso inclui a defesa de políticas que promovam o acesso igualitário à educação, saúde e oportunidades de emprego para mulheres e meninas.
Projeto Deixa Fluir
O Projeto Deixa Fluir nasceu em março de 2021, em Fortaleza. Atualmente são mais de trinta integrantes que trabalham incansavelmente para buscar lideranças locais, estruturar ações, estabelecer pontos de coleta e realizar entregas e campanhas de doação de absorventes. Além da distribuição de itens menstruais, o Deixa Fluir também realiza palestras sobre educação sexual e reprodutiva, capacitações internas e externas, e projetos de empreendedorismo e independência financeira.
Entrevistada: Camila Garcia, participante do projeto.
O projeto Deixa Fluir trabalha um tema essencial para a vida feminina e, por consequência, de grande relevância social. Ao mesmo tempo, parece ser um assunto invisibilizado enquanto item básico para a vida de meninas e mulheres brasileiras, principalmente as que vivem em situação de vulnerabilidade. Você poderia comentar como surgiu a ideia do projeto ele foi influenciado pela experiência em outros lugares?
O projeto nasceu a partir da pesquisa na universidade. Foi criado por mim e por outras cinco meninas, nós estudávamos juntas no colégio. Na faculdade, no comecinho da pandemia, em abril de 2021, a Melina, nossa diretora executiva, estava fazendo um artigo sobre pobreza menstrual e percebeu que não existiam dados sobre esse tema no nível local nem nacional. A partir disso, fomos construindo juntas o panorama geral do que seria o projeto Deixa Fluir. Decidimos agir e criar essa ONG para que nós pudéssemos impactar positivamente a vida das pessoas que sofrem com pobreza menstrual todos os dias. Começamos só nos 6 e hoje já somos mais de 20 participantes. Nosso foco principal é atuar em mais comunidades de risco sócio-econômico, na periferia de Fortaleza, região metropolitana, e em cidades do interior com maiores índices de pobreza. Nenhuma das meninas que entraram no projeto passam por essa situação, então é sempre uma oportunidade de aprendizado. Não tínhamos muito conhecimento nem referências sobre outros projetos que tratassem do mesmo assunto, mas nós fomos conhecendo. Nessa época, já existiam alguns outros projetos que faziam bastante coisa, e nós fomos vendo como eles faziam acontecer.
A gente vê relatos de pessoas que, sem conseguir comprar opções higiênicas, usam papel higiênico, papelão, sacolas plásticas e até jornal sobre a calcinha. Nesse sentido, você pode comentar como vocês se organizam para fazer as doações chegarem nessas meninas e mulheres que mais precisam? Quais as maiores dificuldades que vocês encontram?
Como um projeto social, tentamos sempre ser muito conscientes do que estamos fazendo. Como eu disse, nós atuamos em comunidades de pessoas muito vulneráveis, então são realidades muito díspares. Tentamos sempre agir com responsabilidade e ir onde somos chamadas. Não é muito nosso modo de operação chegar em um local sem uma preparação ou por livre e espontânea vontade. A nossa presença tem sempre que partir da vontade da comunidade. Nosso primeiro contato é com a associação de moradores. A realidade de grande desigualdade socioeconômica que a gente vê na periferia de Fortaleza, acredito que seja algo comum a todas as grandes cidades. Temos alguns bairros que são muito atendidos pelo poder público, e outros como a região metropolitana, Caucaia e Messejana, que são bairros com pouca infraestrutura, pouco atendimento médico, e que dependem muito das lideranças locais. Para enfrentar as dificuldades, eles escolhem pessoas para liderar a comunidade e a maioria esmagadora dessas lideranças são mulheres. As mulheres são as grandes líderes comunitárias, são elas que organizam as pessoas, que tentam conseguir a melhoria para a comunidade. São elas que entram em contato e falam que as mulheres das comunidades têm interesse em conhecer nosso trabalho e que têm dificuldade de comprar absorvente. São as lideranças comunitárias que conhecem a realidade das pessoas que moram ali. Muitos dados e informações que a gente obtém é por meio dessas lideranças. Nós não só doamos absorventes, também fazemos palestras socioeducativas e rodas de conversa. Então percebemos muito a falta de conhecimento e de acesso a informações básicas sobre o que é a menstruação, porque a menstruação acontece. Uma coisa que a gente sempre diz nos momentos de contato com essas mulheres é que a pobreza menstrual é muito mais do que só não ter dinheiro para comprar absorvente. É o abandono da pessoa que menstrua, o abandono institucional. É a mulher que não somente não tem dinheiro para fazer a higiene, como ela também não tem saneamento básico na casa dela, não tem água, nem sabão, não tem calcinha ou uma roupa limpa para se trocar. São pessoas sem liberdade de escolha, pessoas alheias das necessidades de seu próprio corpo. Sobre as dificuldades, acho que a principal é a questão do financiamento. Por sermos uma ONG, não temos uma renda certa para custear as despesas da própria ONG e para manter o estoque dos produtos que serão doados. Hoje em dia a gente faz mutirão de doação, pix day, tentamos aplicar para editais, mas é difícil. Todos somos voluntários e temos outras ocupações. É difícil, enquanto ONG, não ter um fluxo contínuo de dinheiro. A gente tenta ao máximo, mas é muito difícil convencer as pessoas a dedicarem uma parcela da renda delas ao projeto, como é o caso da nossa benfeitoria.
O projeto tem como intuito realizar a entrega de absorventes e também promove palestra socioeducativa sobre o que é pobreza menstrual, cuidados com a saúde sexual e reprodutiva. Como vocês percebem a regulamentação do programa de Proteção e Promoção da saúde menstrual pelo governo Lula, anteriormente vetada por Bolsonaro?
É algo essencial. A gente sabe que as coisas aqui no Brasil não são o que elas aparentam ser, então mesmo com as leis federal, estadual e municipal é muito difícil você encontrar, por exemplo, uma escola onde todas as meninas recebam absorventes. Isso porque existem diversos outros fatores, além da questão da conscientização sobre a pobreza menstrual. Dentre eles, a indicação de verbas públicas para programas que protejam pessoas que menstruam, distribuindo dinheiro para projetos que tenham impacto na sociedade. Além disso, a gente sabe que a menstruação é um tabu, que foi construído historicamente, então é algo muito enraizado. A realidade muda, também não podemos dizer que estamos no mesmo patamar que estávamos há 10 anos. Mas, essas questões institucionais de aprovação de projeto que protejam pessoas que menstruam é muito importante. Precisamos também desse respaldo, de dizer que a nossa causa é reconhecida, que temos uma lei sobre. Então essas coisas podem parecer meio abstratas e até fantasiosas, mas são respaldo para nossa atuação. A gente pode, por exemplo, chegar numa reunião com um gestor e dizer que somos representante social prática, atuamos na sociedade a partir dessa lei e dessas diretrizes, é algo muito importante.
Outros países como Escócia, Peru e Estados Unidos (Califórnia) também implantaram políticas de proteção à saúde menstrual. Como você vê esse processo de difusão e qual sua importância para garantir os direitos de dignidade menstrual?
Primeiro é aquela questão, quando você não reconhece uma coisa que acontece todo mês com uma pessoa que menstrua você a trata como uma cidadã de segunda categoria. Você não reconhece uma parte essencial da nossa vida reprodutiva. Então é muito importante ter esse movimento e pautas que percebam a ligação da pobreza menstrual com a desigualdade social, com o racismo, e com o preconceito de gênero. As propagandas sobre pobreza menstrual são muito direcionadas ao mundo feminino, isso pode muitas vezes atrapalhar. É uma questão de direitos humanos antes de ser uma questão de gênero. Passa pelo reconhecimento do direito à dignidade, à higiene, infraestrutura, moradia digna e de qualidade não é só para as mulheres, mas também para homens trans, já que as políticas públicas contemplam na maioria mulheres e ignoram a existência de homens trans que menstruam. Então são muitos os requisitos que partem do reconhecimento da pobreza menstrual. A gente parte muito do princípio de que o reconhecimento é essencial para que a gente possa agir de forma incisiva. E algo que falamos muito no contato com as comunidades é que essas pessoas precisam lutar pelos seus direitos e reconhecer a sua própria dignidade.
O movimento Girl Up Elza Soares, liderado e articulado por meninas que também distribuem absorventes para pessoas em situação de vulnerabilidade, redigiram em conjunto com o ex-Deputado Estadual Renan Ferreirinha um Projeto de lei sobre inclusão de absorventes em cestas básicas. O projeto foi sancionado, desde julho de 2020, e vale em todo o Estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, como você enxerga o papel das organizações da sociedade civil na formulação de políticas públicas?
Isso é algo muito importante. Desde o começo do projeto a gente já sabia que iria atuar nesses três pilares: distribuição de absorventes e itens de higiene básica nas comunidades, democratização do conhecimento sobre educação sexual e reprodutiva e ação efetiva junto ao poder público, na elaboração de políticas públicas. A intenção é levar a demanda da população para os espaços institucionais, fazer pressão política e contatar autoridades políticas para que vejam o problema e o enxerguem realmente como um problema público. Um dos nossos primeiros parceiros institucionais no começo do Deixa Fluir foi o deputado Célio Studart, chegamos a ir na assembleia e conversar com ele sobre a formulação do PL que ele estava redigindo, recebemos menção honrosa pelo nosso trabalho. Foi muito interessante. Também temos muito contato com a Larissa Gaspar, deputada estadual. Recentemente nós fizemos uma doação junto com a equipe dela para a ocupação Dragão do Mar, que é uma comunidade de moradores de rua que, na minha opinião, ocuparam corretamente um edifício abandonado pelo governo. A gente tenta atuar muito junto ao governo, participando de audiência pública. Ano passado, uma representante do projeto discursou numa audiência pública que teve em homenagem ao mês da dignidade menstrual. Então, a gente fala muito sobre isso, tentando encontrar parceiros. Somos um projeto sempre em atuação política. Procuramos políticos e pessoas que demonstrem interesse na nossa causa, que mostrem essa viabilidade de parceria. Enquanto organização não governamental não existe uma filiação partidária, mas visamos a viabilidade e o reconhecimento do projeto. As ONGs ajudam, sim, a colocar o assunto em pauta. Quando vários movimentos surgem nesse sentido significa que a sociedade está comprometida e interessada em buscar mudanças nessa pauta.
Referências:
ARAÚJO, Gisele. Como um grupo de meninas conseguiu aprovar leis sobre pobreza menstrual no Rio de Janeiro e no DF. O Globo, [26 mar. 2021]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/como-um-grupo-de-meninas-conseguiu-aprovar-leis-sobre-pobreza-menstrual-no-rio-de-janeiro-no-df-24932524.
BBC NEWS. Absorvente de graça: Escócia se torna o 1º país do mundo a oferecer produtos menstruais gratuitos a mulheres. BBC News. 17 ago. 2022.
CRAVO, Alice, BANDEIRA, Karolini. Lula assina decreto que institui distribuição gratuita de absorventes pelo SUS. O Globo, [8 mar. 2023]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/03/lula-assina-decreto-que-institui-distribuicao-gratuita-de-absorventes-pelo-sus.ghtml.
Dignidade Menstrual no Brasil: Desafios e Perspectivas. Brasília: UNICEF, UNFPA, maio 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf.