Valéria Oliveira, superintendente de trânsito, fala sobre a participação de Palmas no Programa AcessoCidades

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Valéria Ernestina de Oliveira – Superintendência de Trânsito e Transportes da prefeitura de Palmas
Graduada em Arquitetura e Urbanismo e Direito. Pós Graduanda em Gestão e Desenho da Mobilidade Urbana. Concursada na prefeitura de Palmas como Agente de trânsito e transportes desde 2000. Desempenhou várias funções e participações em projetos urbanos e planos diretores. Está à frente da Superintendência de Trânsito e Transportes e coordenando as atividades de elaboração do Plano de Mobilidade Urbana de Palmas.

O programa AcessoCidades é desenvolvido pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), com apoio da União Europa. De quem partiu a iniciativa de ter Palmas no programa e como foi o processo de seleção?

Eu estou mais na base, na ponta da execução do programa, mas o que acontece é que a nossa prefeita, Cinthia Ribeiro, é muito atuante na Frente Nacional de Prefeitos. Ela sempre ocupa cargos da diretoria da FNP, então acho que, até em virtude do cenário da cidade de Palmas na construção da própria FNP, nós temos participado de muitos eventos, cursos e treinamentos. Ano passado eu participei de uma série de cursos patrocinados e organizados pela FNP. Quando foi mais ou menos em agosto nós recebemos o ofício falando sobre a adesão, se nós concordaríamos e, claro, foi muito bem recebido pela prefeitura e a partir daí nós passamos a fazer parte deste grupo. Eu não sei se foi baseado no perfil que a cidade tem ou se em virtude deles já saberem que nós estávamos elaborando um Plano de Mobilidade, mas há um tempo nós estamos participando muito ativamente da FNP quando o tema é transporte coletivo e mobilidade urbana. O cornograma prevê que a gente encerre as atividades do Programa, a princípio até setembro, mas claro que pode haver atrasos. O apoio técnico é para a elaboração do plano, depois eu posso ver se eles ainda vão acompanhar a gente.

Pelo que vimos, o programa teve seus primeiros encontros muito recentemente. Quais as expectativas da gestão quanto a ele e que outras ações ainda serão desenvolvidas dentro dele?

Quando Palmas foi formalmente oficializada no grupo que receberia esse projeto do AcessoCidades foram iniciadas algumas oficinas, através de videoconferência, para nivelamento das informações. A equipe é muito preparada, tanto a equipe dos técnicos da FNP quanto as equipes que foram terceirizadas para estarem levantando esse diagnóstico. Nós fizemos reuniões mensais, acredito que a partir de outubro do ano passado, mas sempre muito pautadas pela informação, nivelando os municípios e fazendo a coleta dos dados. Foi um trabalho técnico muito importante. 

O ciclo de atividades do programa iniciou dia 27 de fevereiro e foi até 2 de março, com a nossa oficina presencial. Contamos com um momento de entrevistas como parte do diagnóstico qualitativo e foi apresentado o diagnóstico dos dados captados. Então esse evento ele veio como um raio-x das informações porque tudo que eles trouxeram eram dados muito ricos do nosso município, tanto da parte social, econômica, de saúde e também os dados de mobilidade. 

A partir do momento que fizemos essa oficina, que adentramos nessa experiência, nós passamos uma semana mergulhados na temática de raça, gênero e classe na mobilidade. Foi apontado o que nós precisaríamos, o que nós gostaríamos, e quero até frisar e parabenizar a FNP, porque apesar deles terem uma base, um diagnóstico padrão para aplicar nas cidades, eles tiveram todo o cuidado de que cada município identificasse ou mencionasse como seria a aplicação do programa, e justamente como nós estamos em fase de elaboração do Plano de Mobilidade, o nosso objetivo foi inserir esse tema dentro do nosso plano, então nós vamos ter um capítulo sobre raça e gênero na mobilidade urbana. 

Nós já deixamos alinhados que elas estariam voltando aqui em Palmas, numa próxima etapa quando o plano estiver concluído na sua fase de diagnóstico, entrando no prognóstico, para nos auxiliar em como formatar essas propostas para que o nosso Plano de Mobilidade contemple todas as diretrizes e a gente possa atender as pessoas apontadas por esse diagnóstico.

Como vocês viram que o recorte raça/gênero era importante para as discussões de mobilidade urbana?

Isso foi um puxão de orelha pra nós. Eu sou funcionária pública há mais de 20 anos, amo a área de planejamento urbano, sou concursada como agente de trânsito aqui no município, mas sou  arquiteta de formação e por isso eu sempre fui muito direcionada na prefeitura para trabalhar na área de planejamento urbano com interface na área de mobilidade. Eu venho de uma formação, acredito que como a maioria dos técnicos desta área, muito arraigada numa questão técnica, com a preocupação no trânsito, nos veículos e na fluidez, e perdemos de foco as pessoas, que é o que mais importa nesse processo. Desde quando a FNP iniciou os cursos de capacitação, eles foram deixando claro isso. O Dr. Eduardo Vasconcelos tem uma grande participação nisso, ele é estudioso e sociólogo, e ele veio contextualizando e falando sobre a importância de voltar à própria característica urbana que vem se preocupando e colocando as pessoas como centro. Então, a partir do momento que iniciou esses cursos de capacitação, foram sendo pincelados e detalhados todos os assuntos que precisavam ser discutidos. 

Em novembro do ano passado eu tive a oportunidade de assistir a palestra da Tainá pessoalmente, porque por mais que Palmas tenha feito a adesão, eu confesso que até ali a gente não conseguia contextualizar isso na prática. Eu estive em Salvador no encontro da WRI e a Tainá fez a apresentação sobre raça e gênero e parece que ali as cortinas se abriram de fato, porque como nessa parte da preparação a gente tava falando muito sobre dados, nós não conseguíamos entender de fato o que seria recebido e quando eu participei da palestra eu comecei a entender do que estava sendo falado e como a gente precisava voltar os nossos olhares pra cá. 

Quando eu estava organizando, porque ficou sobre minha incumbência organizar, levantar os grupos, fazer um levantamento, mesmo com a primeira audiência pública feita ano passado, foi quando eu comecei a entrar nesse universo e descobri que eu não sabia de nada. Nós fazemos um debate de raça e gênero muito voltado ao direito dos negros, mulheres, homossexuais, e não trazemos essa percepção para os serviços públicos e aí eu vi que essas pessoas não estavam inseridas no meu plano de mobilidade, no meu diagnóstico, não que não estivesse porque quando a gente faz um covite, a gente está estendendo a todos, mas só foi mediante a oficina que ficou destacado que existe um grupo sim que enfrenta dificuldades, que é desfavorável em situações e que a gente precisa ter todo um cuidado para minimizar essas desigualdades. 

Quando eu comecei a fazer entrevistas sobre isso ouvi muitas críticas dos meus colegas: “ah, mas porque falar de negro, de raça na mobilidade?”, então você já percebe desses comentários como ainda é um assunto que precisa ser melhor tratado, principalmente através da política pública, por mais que ela ainda não seja totalmente compreendida. Existem coisas que você precisa ter ali como lei, como diretriz, para que alguns serviços sejam implantados obrigatoriamente pela força da lei para que depois ela vá virando uma regularidade. Hoje, depois que ouvimos os depoimentos no final das oficinas, mais os feedbacks recebidos pelas técnicas da FNP, nós vimos como realmente estávamos com olhos fechados para o tema. 

Poderia dizer um pouco das suas conclusões quanto ao debate raça/gênero promovido durante as conversas?

O debate foi muito enriquecedor. São coisas que de alguma forma nós sabemos, mas que não paramos para trazer esse assunto para a discussão e ver que poderia ser resolvido através de uma política pública como a mobilidade. A mobilidade hoje acaba sendo mais os meios de transporte, dificultando os acessos através de um serviço com uma estrutura muito paternalista, machista, que nós já conhecemos, mas que também não se tem como pontuar de quem é falha porque faz parte do sistema, veio com ele, é muito antigo, mas que precisamos começar a mudar as engrenagens para que de fato a gente possa utilizar a mobilidade de forma inclusiva, equitativa e integrativa. 

Nestas conversas nós pudemos ouvir relatos de coisas recentes que talvez na minha cabeça ou na cabeça dos técnicos que estão a frente do plano, não estavam acontecendo. Relatos sobre segurança, sobre mulheres e jovens sendo assediadas, sobre discriminação, não só o assédio sexual, mais também o moral. Nós ouvimos o relato de um pedreiro que queria ir para a faculdade e foi deixado para trás pelo próprio motorista, pelas roupas que estava vestindo, e aí ele acabou perdendo prova, então, são exemplos que a gente começou a ouvir que chocou muito porque sabemos que precisamos da mudança, mas até mesmo no próprio grupo que utiliza o serviço há discriminação, não há uma ajuda para que as coisas mudem, parece que é uma coisa que está arraigada na base, como se o pobre achasse que merece aceitar o transporte daquele jeito simplesmente pelo fato de ser pobre, cito o transporte aqui porque é sobre o que estamos falando e o que foi colocado que é onde é muito sentido, pelo valor, pelo sistema, pela falta de qualidade, pela falta de infraestrutura, que acaba fazendo com que você tenha uma discriminação generalizada. 

Uma das coisas que marcou muito para nós foi quando fizemos duas reuniões de grupos focais separadas porque Palmas tem barreiras físicas que dificultam muito os acessos, a forma como ela foi implantada, ela é muito espraiada, então, nós acabamos fazendo em dois pontos e nas duas reuniões pessoas diferentes comentaram para nós que o transporte coletivo hoje poderia ser comparado a um navio negreiro da época da escravatura, e isso foi um choque enorme para a gente porque você parar para pensar há quanto tempo nós passamos dessa fase e estamos lutando para que essa igualdade seja de fato aplicada e você ouvir de alguém mencionado que o transporte coletivo pode ser comparado a um navio negreiro foi arrebatador para nós, chocou todo mundo e nos fez nos questionarmos enquanto técnicos e responsáveis por esses serviços, mas ao mesmo tempo a gente viu a vontade dessas pessoas, principalmente as que são articuladores e estão à frente desse grupo, de mudar, de participar, de contribuir. Então foram contribuições riquíssimas, e o bacana é que é uma galera que não quer deixar de andar de ônibus, que é outra coisa que a gente vem discutindo e tentando desmistificar que andar de ônibus não é sinônimo de pobreza, é sinônimo de inteligência, de meio ambiente, de você ajudar a melhorar a sua cidade, e eles não querem deixar de andar de ônibus, só querem um serviço de qualidade, que seja seguro, que seja inclusivo. Então isso para nós foi engrandecedor, A Frente mandou o diagnóstico revisado para nós, ele ta muito abrangente, muito completo e inclusive está no nosso site e como vocês falaram, não sei se vamos ser referência, mas queremos contribuir com as nossas experiências, queremos que de fato seja um Plano muito especial para Palmas e que se tiver que ser, que também sirva de exemplo e estudo de caso para o resto do país. 

A senhora nota que diálogos diretos entre prefeituras, secretarias e entidades internacionais se mostram eficazes para o desenvolvimento do estado?

Essa integração é fundamental, principalmente com o avanço da tecnologia. Isso tem dado mais subsídios, principalmente para as prefeituras, a se informarem, a buscarem referências, estudos de caso. Eu também vejo que essas entidades internacionais têm sido um elo entre vários órgãos, principalmente de apoio técnico. Nós aqui estamos fazendo parte do AcessoCidades, fazemos parte também da WRI que tem sido fundamental. Às vezes só o fato de nos reunirmos e ouvirmos experiências de outros municípios, porque lá é compartilhamento de boas práticas, e também ainda tem como objetivo desenvolver a pesquisa QualiÔnibus, na qual eles criaram um tipo de análise de dados do transporte coletivo, que você consegue ir comparando as desigualdades do município, até para você ter um norte, ter uma visão de como é que você está no cenário nacional, estadual. Nós também acabamos aderimos ao projeto TUMI, da organização ICLEI, que também tá vindo com todo esse apoio técnico em relação a identificação do sistema de transporte coletivo. 

O que eu acho é que se a gente não tivesse esse apoio hoje talvez nós estaríamos muito aquém dessas políticas ou do que está acontecendo a nível mundial, nacional porque essa rede de informações, de técnicos tem contribuído muito. A mobilidade ganhou uma projeção e um nivelamento que eu falo de mobilidade urbana desde 2007, quando queríamos fazer um plano de mobilidade, mas era aquela coisa isolada e hoje a gente consegue falar isso em nível global, então é de grande importância. Nesta audiência de sexta-feira , que a gente realizou aqui depois da apresentação do diagnóstico de raça e gênero, eu até brinquei e falei: parece que a gente só tem problema porque só foram apresentados problemas, mas o interessante é que nós não estamos vendo como problema, estamos vendo como oportunidade, porque é a primeira vez que a gente passou a ter dados, que a gente passou a ter uma pesquisa de origem e destino,  que eu passei a ter informações coletadas de forma científica, através de uma metodologia que eu possa medir, que eu possa saber se isso vai melhorar ou não, então é a oportunidade que nós estamos tendo aqui para melhorar. Tá ruim? Tá, mas se eu não souber disso, eu nunca vou conseguir de fato melhorar, então os dados foram de suma importância e essa integração, ela é de suma importância para o desenvolvimento, local, estadual e nacional.

Com a experiência da participação no AcessoCidades, para os próximos anos, podemos esperar mais parcerias entre vocês e outros países ou organizações internacionais para o desenvolvimento da discussão de gênero e raça ou outras temáticas??

Esperamos sim, temos bastante interesse. É um processo que como eu falei nós estamos começando. Mas a gente também sabe que o Plano Diretor ele vem com uma proposta de diretrizes, claro que depois nós temos todos os desafios da implementação, precisamos implementar nossos indicadores, vamos precisar fazer ações para que de fato a gente consiga atender as diretrizes que vão constar no plano. Às vezes a gente tenta direcionar mas isso vai ser uma construção técnica, então, na hora que tirarmos esse plano do forno, nós precisamos fomentá-lo justamente por meio de campanhas educativas, de obras, de mudanças estruturantes no transporte, da inclusão de novos ônibus exclusivos para mulheres na execução desses pontos de ônibus. Claro que eu falei dentro da área de mobilidade, mas eu sempre acompanho as outras pastas da prefeitura de Palmas que tem vários projetos, por exemplo o ICLEI chegou até o transporte porque eles já tem um projeto muito grande com a prefeitura, o Palmas Solar, então ele veio a Palmas com esse foco e aí um novo braço do ICLEI sobre transporte coletivo fez a gente unir os projetos. Temos muitos projetos na área do meio ambiente, na área de infraestrutura, mas da mobilidade nós temos interesse em aprender muito mais sobre gênero e raça e de fato implementá-lo, esse é o nosso objetivo. Palmas está apta e ela quer parcerias.

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