Especialista Giulia Barão debate a temática cultura e desenvolvimento.

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Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil, 2013), Mestre em Cultura de Paz pela Universidade de Cádiz (Espanha, 2019) com bolsa da Associação Ibero-Americana de Pós-Graduação (AUIP) e Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Salamanca (Espanha 2018) com bolsa da Fundação Carolina/Banco Santander. Possui especialização em Relações Culturais Internacionais (CAEU/OEI, 2015) e Epistemologias do Sul (CLACSO, 2017). É doutoranda em Ciências Sociais – Estudos Comparados sobre as Américas pela Universidade de Brasília, Brasil, em Cotutela com o Doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Salamanca, Espanha. Membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília e do Observatório do Regionalismo – ODR. Possui experiência acadêmica e profissional na Espanha, Colômbia, República Dominicana e Brasil, principalmente em cooperação internacional, internacionalização de políticas públicas e organizações regionais na América Latina e Caribe, com ênfase nas áreas de educação, cultura e comunicação. Atualmente atua como consultora do IESALC, Instituto Internacional da UNESCO para Educação Superior na América Latina e Caribe.

Você poderia começar falando um pouco sobre a relevância da cultura para o desenvolvimento sustentável das cidades e como essa temática tem sido tratada dentro da agenda global?

Antes de partir para o tema das cidades, acredito que seja importante retomar para o ponto de partida, a Agenda 2030, que é o atual instrumento que congrega os objetivos para os quais a comunidade internacional deve se dirigir, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e que a cultura, enquanto ODS específico, está ausente. Essa falta é curiosa porque nas conversas preparatórias anteriores a 2015, o setor cultural, e me refiro tanto aos agentes culturais de nível nacional quanto à própria Unesco, a organização multilateral referência no campo cultural, falavam e defendiam a importância de incluir a cultura como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável, além dos pilares econômico, social e ambiental. Inclusive, temos a Declaração de Hangzhou de 2013, anterior à Agenda 2030, que foi aprovada em 2015, na qual já se falava sobre colocar a cultura no cerne das políticas de desenvolvimento sustentável. Apesar disso, a Assembleia Geral da ONU, quando aprovou a Agenda 2030, não incluiu esse pilar e nem um ODS específico sobre a cultura. Obviamente, o tema é tratado indiretamente, por exemplo, no ODS 4 da educação é abordado o modo que a educação pode ser utilizada como uma ferramenta para incutir novos valores culturais, visando trabalhar a diversidade cultural e a promoção de uma cultura de paz. Além disso, os direitos culturais são tidos parte da educação, na formação de públicos para produção e fruição da cultura, bem como na democratização do acesso à cultura. No ODS 11, o das cidades e comunidades sustentáveis, é mencionado a importância do patrimônio cultural, material e imaterial, no ODS de economia é tratado sobre o valor do turismo cultural e a importância dessa atividade como forma de desenvolvimento econômico. 

Interessantemente, na aprovação da Agenda, em 2015, foi observada a ausência da cultura e as cidades, os municípios e os governos locais estiveram entre os que se manifestaram com maior insistência sobre a necessidade de trabalhar por uma visão transversal da cultura na agenda global e por visibilizar o papel da cultura em todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Nesse sentido, uma das organizações-chave foi a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), que surgiu no início dos anos 2000 e aprovou em 2004, anteriormente à Agenda 2030, a Agenda 21 da Cultura, em Barcelona, no primeiro Fórum Global das Culturas, a qual já vinha sendo trabalhada desde 2001, em Porto Alegre (RS), no primeiro Fórum Social Mundial. Então vemos que, antes das discussões de nível Unesco e Assembleia Geral da ONU, as cidades e os governos locais já debatiam o papel da cultura no desenvolvimento local e como ele era necessário para o nacional e, consequentemente, para o avanço da agenda global. Dessa forma, acredito que há uma conexão bastante clara entre cidades e desenvolvimento sustentável, porque temos no território da cidade, no espaço público, a materialização dos conceitos que às vezes podem parecer abstratos na política cultural: a democratização, o acesso, a cidadania cultural, os direitos culturais

Podemos ver, por exemplo, as políticas culturais materializadas no planejamento urbano ao pensarmos em como gerar o acesso à cultura de forma concreta no espaço da cidade, conectando o desenvolvimento local, a cidadania e, inclusive, a justiça social. Esse último está ligado porque, pensando no planejamento urbano, existem áreas da cidade marginalizadas em que os moradores não têm as mesmas condições de acesso, por exemplo, a um teatro que está em outro bairro por precisar de transporte público pouco acessível ou indisponível em horários adequados Então, tudo isso tem a ver com políticas muito concretas que se dão no espaço municipal ou local e podem estar relacionadas com o planejamento urbano e a sustentabilidade ambiental. Uma política que tem se tornado cada vez mais frequente é pensar em uma frota de transporte público sustentável, por exemplo, incluir ônibus com sistema solar ou gás natural, até mesmo usar transportes alternativos, como bicicletas e patinetes, que gerem conectividade entre os diferentes espaços da cidade e foquem, por exemplo, nos lugares que possuem algum interesse cultural, como uma praça marcada por festividades e celebrações importantes que sejam contextualmente relevantes para as populações que habitam aquele lugar. E, como falei, embora tenhamos a cultura esteja ausente entre os ODS, há outros mecanismos que os próprios agentes culturais foram tentando avançar e produzir para visibilizar a cultura no desenvolvimento sustentável. Em relação a isso, temos a Nova Agenda Urbana, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2016, e nela a cultura é mencionada como um elemento necessário a qualquer política de planejamento urbano por fazer parte da dimensão econômica do desenvolvimento das cidades. Além disso, é parte da dimensão simbólica de pertencimento porque só protegemos o patrimônio que reconhecemos como nosso, só valorizamos um espaço público e cultural se nos sentirmos parte daquele lugar e se somos acolhidos e encontramos sentido nele. Então, digamos que essa noção de cultura no desenvolvimento local passa não só pelo interesse econômico, que geram as atividades culturais em termos de indústria criativa e culturais, mas também por essa dimensão simbólica do desenvolvimento, que nos faz sentir como cidadãos ativos num espaço público democrático e representativo das diversidades de um lugar, não só limitado a uma elite econômica com acesso a essa fruição cultural.

Quais instituições internacionais e regionais têm se destacado nesse processo de promoção de políticas culturais?

Em relação às políticas culturais, as instituições mudaram bastante nos últimos 10 anos e, atualmente, se formos pensar nas organizações regionais como a União Europeia, a União Africana, a ASEAN e o Mercosul, todas têm uma dimensão cultural. Por vezes essa presença é um setor específico, às vezes apenas um programa de cooperação cultural, mas sempre está presente, é um tema que precisa ser trabalhado, mencionado e provocar reflexões. É quase impossível pensar num projeto de cooperação ou integração regional existente na nossa época que não tenha alguma passagem pela dimensão cultural. Além das instituições regionais, não tem como falar de política cultural no cenário internacional sem citar a Unesco, a organização pioneira de nível multilateral, que trabalha com cultura, educação e ciência, bem como a transversalidade desses três. Da Unesco emanam as principais convenções multilaterais no campo cultural dos últimos anos, como a de 2005 sobre a Diversidade das Expressões Culturais e a Convenção do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003. Inclusive, essa última é bem importante para a América Latina e Caribe porque, em parte graças ao trabalho da região, expandiu-se a concepção internacional sobre o que é patrimônio cultural. Há uma Convenção anterior, de 1972, que é a do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, focada em monumentos e sítios históricos, seguindo uma concepção mais arquitetônica do que seria o patrimônio a ser preservado no âmbito cultural. A convenção de 2003 veio para romper com essa barreira e focar também nas manifestações e expressões culturais que, não necessariamente, estão concretizadas num espaço. Muitas vezes possuem espacialidade própria, como uma praça, um teatro ao ar livre ou um caminho no qual se percorre em uma determinada festividade, mas não há exigência da monumentalidade, de ser um sítio excepcional que não existe igual no mundo. Na verdade, depende da própria comunidade valorizar aquele elemento cultural como algo relevante para a sua existência, seu pertencimento, sua forma de estar no mundo, para poder ser reconhecido como patrimônio cultural imaterial. Além da Unesco, importante por causa dessas convenções de nível global, existe a Organização dos Estados Ibero-Americanos para Educação, Ciência e Cultura (OEI) desde 1949, com o mesmo tipo de mandato da Unesco, mas é de âmbito ibero-americano, o que inclui Espanha, Portugal e os países latino-americanos.  

Ademais, tratando-se de cultura no cenário internacional, não se pode deixar de mencionar as organizações do tipo “fonia”, apoiadas no argumento linguístico e cultural, como a Organização Internacional da Francofonia, formada por países de língua oficial francesa ou que tenham a intenção de desenvolver programas de língua francesa, não necessariamente como língua oficial, além da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reúne os países de língua oficial portuguesa. Essas organizações, usam o idioma, a cultura e a história como ferramentas de diplomacia cultural no sentido clássico, sendo a cultura a base para as demais decisões. A CPLP é um exemplo claro desse processo, tendo iniciado com um foco no idioma, através do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa) e hoje inclui áreas como saúde e segurança. Ademais, merece menção o Mercosul, uma organização regional ligada com a cultura desde seu início, porque o Tratado de Assunção foi assinado em 1991 e no ano seguinte houve a primeira reunião de autoridades da cultura para discutir como as políticas culturais poderiam ser uma ferramenta de aproximação e de que forma seriam trabalhadas de maneira coordenada entre os quatro Estados fundadores. Já em 1996 foi assinado o Protocolo da Integração Cultural do Mercosul, então o Mercosul Cultural surge depois de apenas 5 anos do início da organização, assim é possível ver que desde sempre se discutia políticas culturais. Atualmente, é uma das áreas mais interessantes porque no Mercosul as questões técnicas de comércio e harmonização de políticas econômicas costumam estar muito enfocadas nos quatro Estados-parte –  Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – mas na área cultural os Estados associados participam ativamente. Então, em uma reunião do Mercosul Cultural, sem ser a de ministros que é a instância mais alta, mas a das comissões especializadas, os associados cooperam de forma efetiva e discutem igualmente a cooperação cultural na região, ampliando a dimensão do setor cultural no Mercosul. Por fim, faço referência ao Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (CRESPIAL), que é centro associado à Unesco, com sede no Peru e que reúne todos os países da América Latina e Caribe especificamente para discutir e promover políticas de patrimônio cultural imaterial.

De que forma a cultura e as políticas culturais de um governo local podem se beneficiar com a cooperação internacional?

Acredito que as cidades como atores do sistema internacional têm uma vantagem frente aos Estados por terem um pouco mais de facilidade acesso aos atores culturais. Está claro que precisam se submeter ao poder dos estados e da federação, mas, ao mesmo tempo, possuem proximidade com os movimentos sociais, a cidadania local, os artistas e os gestores, ou seja, têm acesso quase instantâneo às pessoas que estão produzindo cultura diariamente. Então, as cidades têm esse recurso instantâneo de acesso ao cultural, o que lhes dá essa capacidade de poder se conectar com uma cidade vizinha, sendo em um país próximo ou até do outro lado do mundo, e ter elementos muito concretos para trabalhar juntos. No caso do governo federal, às vezes, isso é tão distante e abstrato, porque se trata de políticas públicas aplicadas no país inteiro, e para saber como aquela política está sendo aplicada, em João Pessoa ou em Porto Alegre, será necessário consultar, às vezes, o pessoal do estado ou então do município. Mas no caso da cidade não, ela tem ali o recurso de conexão direta com as pessoas que estão fazendo cultura no ambiente da cidade, o que pode ser utilizado na cooperação e para a formação de redes e troca de experiências. E isso é importante para o que estávamos discutindo no início acerca da contextualização dos ODS, que é a possibilidade de conhecer através da cooperação como as políticas públicas locais estão aplicando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável localmente e, por exemplo, realizar um intercâmbio de boas práticas, entender como foi feita a tradução concreta dessa Agenda multilateral no território, no município, no ambiente material real daquela cidade específica. E também acredito que as cidades, nesse âmbito, podem se utilizar da paradiplomacia para desenvolver redes com os governos locais, como a CGLU e a Mercocidades, aproveitar o cenário internacional e conseguir ter um impacto mais direto na agenda de desenvolvimento, através desse papel de tradução e transferência, sempre mediado pelo Estado, da agenda global para o local.

Além disso, a cooperação pode ajudar os municípios a conseguirem recursos por meio de editais, intercâmbio ou assistência técnica, porque às vezes o Estado não consegue transferir por falta no orçamento federal. É importante que as administrações locais também tenham voz no próprio processo de elaboração dessas políticas globais para que, no momento da implementação, não se tenha a sensação de que é algo imposto de cima para baixo. Dessa forma, os governos locais também têm essa responsabilidade de fazer valer essas vozes diversas ao redor do mundo e, talvez, pluralizar um pouco esse cenário global. Caso contrário, estaríamos, de novo, voltando para um contexto em que apenas os Estados-nação, ou inclusive os representantes dos Estados-nação, têm voz no cenário internacional, o que não é realista no mundo em que vivemos, cada vez mais diverso e plural.

Na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (MONDIACULT 2022), um dos principais debates estava voltado ao fortalecimento das políticas culturais. Quais as principais questões discutidas na conferência e o que tem preocupado os governos e organizações internacionais?

A primeira MONDIACULT aconteceu no México, em 1982, e foi um marco extremamente importante para quem estuda políticas culturais no cenário internacional, porque a sua declaração final é um dos primeiros documentos internacionais que adotou a concepção antropológica de cultura. Esse conceito não reduz a cultura aos bens e serviços ou ao consumo, mas a trata como a dimensão simbólica e de coesão social das comunidades e dos grupos sociais e, então, valoriza a representatividade dos diferentes grupos sociais que compõem uma nação e não apenas uma concepção única do que seria uma identidade nacional. A tradução disso em termos de políticas demanda que sejam culturais democratizadoras, em que a população tem voz e agência desde o início do processo de elaboração das políticas. Na MONDIACULT se fixaram esses princípios participativos, em que a cidadania deve ajudar a decidir aquilo que será valorizado e como será financiado, deve possuir cidadania cultural, direitos culturais, e não ser vista apenas como consumidora finais desses bens e serviços culturais. Então, a MONDIACULT voltar para o México, 40 anos depois da primeira edição, indica que, talvez, seja um novo marco nas relações culturais internacionais. O contexto de 1982 mostrou a relevância do tema da representatividade cultural porque foi um momento de efervescência na América Latina, em que os países passavam pelas transições democráticas, ao mesmo tempo que os movimentos sociais começavam a ter voz num cenário até então extremamente repressivo. Em 2022, apesar de ser um cenário diferente, tivemos um pouco disso também, ao menos no caso brasileiro, mas existem fatores estruturais e conjunturais do cenário internacional que tiveram mais força, como a invasão da Rússia à Ucrânia, que foi determinante para o ambiente da conferência, o tipo de debate e os temas priorizados. Houve um foco na questão da cultura e segurança devido às preocupações em relação à destruição de bens culturais ou mesmo o saqueio e tráfico ilícito desses bens em contexto de conflito armado. 

Além disso, a temática da prevenção e combate ao tráfico ilícito de bens culturais já vinha se fortalecendo desde o contexto da pandemia da Covid-19. Esse período também trouxe à tona esse tema, porque com espaços culturais vazios ficou mais fácil roubar e extrair bens culturais de museus e arquivos, por exemplo. Então crescimento desse tipo de atividade ilícita durante a pandemia foi notável. Inclusive, em 2020, a Convenção da Unesco de 1970 sobre prevenção e combate ao tráfico ilícito de bens culturais completou 50 anos, o que, somado a pandemia da Covid-19 e Guerra na Ucrânia, condicionou a importância desse tema dentro da MONDIACULT. E também o fato de existir uma divisão no cenário internacional entre os países colonizados e os colonizadores acerca desse tema, porque os colonizadores têm uma série de bens culturais extraídos ilegalmente das suas colônias durante o período de colonização e, com isso, hoje temos bens culturais de praticamente todos os países do mundo, por exemplo, no Louvre, na Royal Gallery e assim por diante. Então, obviamente, com as discussões da Assembleia Geral e do Comitê dessa convenção, existe uma polarização entre os países da Europa em geral e os da Ásia, África e América Latina, com exigências por parte destes últimos de retorno e repatriação dos bens culturais retirados dos seus territórios em situações de ocupação estrangeira ou de colonização. No entanto, o detalhe da Convenção de 1970 é que ela não cobre o período anterior à sua ratificação, não é retroativa, então os países que foram colonizados não podem fazer demandas de repatriação com base na convenção. Por isso, eles acabam recorrendo a outros instrumentos para fazer essas demandas. Nesse sentido, torna-se um tema bastante politizado, porque escapa, digamos, ao controle do que a Convenção realmente cobre e se torna uma questão muitas vezes bilateral, entre o país cujo bem foi ilegalmente levado e o que levou o bem cultural. Ainda vemos repercussões desse tema, por exemplo, o Brasil vai receber de volta o manto Tupinambá, um bem cultural indígena levado pela Dinamarca por volta do final do século XVII e que se encontra exposto no Museu Nacional da Dinamarca, tem previsão de retorno ao Brasil em 2024. Esse bem deverá ser doado ao Museu Nacional no Rio de Janeiro, como parte da recomposição de sua coleção. Então é um tema muito em alta que foi bastante tratado na MONDIACULT e vai continuar sendo por um longo período, porque existe uma abundância de bens culturais em pleito para a repatriação ou retorno. Além disso, a declaração final da MONDIACULT 2022 trouxe a ideia de cultura como bem público global, o que é importante porque coloca a cultura no mesmo nível dos outros objetivos de desenvolvimento, como educação, preservação do meio ambiente, combate à mudança climática. Com isso, põe a diversidade cultural e os direitos culturais como uma responsabilidade coletiva a ser tratada no âmbito da governança global, como um tema a mais de debate na agenda global. E, associado a isso, fez-se um chamado para que a próxima agenda, pós-2030, inclua um objetivo cultural, retomando aquela necessidade antiga de englobar a cultura como um pilar do desenvolvimento. 

Dentre outros temas importantes, foi mencionado o papel da cultura na ação climática e o papel dos povos originários em oferecer modalidades alternativas de desenvolvimento. Essas, por sua vez, são sustentáveis em si mesmas, porque propõem outra relação entre a humanidade e a natureza e valores culturais diferenciados, que não são da civilização urbana ocidental. Inclusive, uma das organizações da sociedade civil que participou da Mondiacult, a Climate Heritage Network, publicou um documento específico sobre as artes, a cultura e o patrimônio como instrumentos para acelerar a ação contra a mudança climática. Então existe essa relação, que às vezes não é tão óbvia, entre repensarmos a base do nosso sistema de desenvolvimento urbano, capitalista e produtivista, relativizando-o a partir de outras culturas que não se baseiam nesses princípios.

No contexto da integração entre os países da América Latina e do Caribe, há particularidades nas políticas culturais em comparação com as demais regiões do globo?

Sim, existem, não poderei falar em detalhes porque isso demandaria um estudo específico comparativo, mas em relação às temáticas gerais e às características da região, tem-se a busca por uma política cultural decolonial, que é bem importante porque tivemos, por muito tempo na nossa região, políticas culturais extremamente nacionalistas e baseadas na noção de uma identidade nacional unificadora, com pouco significado para os diferentes grupos sociais, incapaz de incluir as diversidades internas ao Estado-nação. Vimos isso, historicamente, por exemplo, com a apropriação do samba ou da capoeira como símbolos nacionais pelo Estado brasileiro, enquanto as populações que produzem e elaboram essa manifestação cultural, sofriam e ainda sofrem racismo e preconceito; demonstrando uma lacuna de democratização entre o que está sendo promovido como patrimônio cultural do país e os sujeitos detentores daquele patrimônio. Assim, uma das questões na região é justamente essa: como criamos uma coerência entre aquilo que mostramos ao exterior como identidade nacional e cultural, e o que está sendo feito internamente, visando a mesma igualdade de acesso, tanto à produção quanto à fruição dessa produção cultural, para a população. Nesse sentido, pensamos em políticas de reparação histórica e de reconhecimento da diversidade cultural, por exemplo, na inclusão de vozes indígenas e afrodescendentes na elaboração de políticas públicas para que desde o início do processo esses diferentes grupos sociais possam ter opinião e ver refletidas as suas necessidades culturais na política pública.  Além disso, e acredito que isso conecta com a desigualdade da América Latina na sua totalidade, não conseguimos pensar em uma política cultural democrática se não pensarmos em como diminuir a desigualdade, por ser uma questão que afeta o acesso à cultura, seja pela formação educacional, possibilidade de comprar entradas para a produção cultural que nem sempre são baratas, ou, inclusive, pela oportunidade de escolher trabalhar em uma profissão artística tendo condições financeiras de se manter, porque é uma das profissões mais precarizadas na nossa época, um setor ainda subaproveitado, considerado supérfluo muitas vezes. 

Outro fator interessante é o papel das redes culturais, das redes de cooperação transnacional e da sociedade civil. Temos na América Latina um processo chamado de relações internacionais desde abajo, que é essa conformação de redes de movimentos sociais, comunidades, gestores culturais, artistas e criadores que promovem sua própria cooperação internacional. Por exemplo, o Fórum Social Mundial originou muitas dessas redes e continua favorecendo isso, além do Movimento Cultura Viva Comunitária, uma rede transnacional que batalha, entre outras coisas, para que os orçamentos nacionais destinem ao menos, acredito que 0,2% do PIB, para os chamados pontos de cultura. Esses pontos são as organizações e espaços culturais criados pelas próprias comunidades, como uma biblioteca ou um centro de artes comunitário, então a proposta é que essas organizações consigam receber financiamento e apoio para se manter além dos próprios esforços. Nesse sentido, pensamos em uma política cultural descentralizada, que não centre decisões e recursos apenas no Estado, mas escute também essas vozes das comunidades que estão fazendo cultura por conta própria. Então, esse é um tema bem importante na região, essa descentralização da cultura e essas redes de articulação transnacionais.

As indústrias culturais e criativas (ICCs) geram US$ 2.250 bilhões de receitas, segundo dados da UNESCO. Você poderia falar um pouco sobre cultura, comércio e bens culturais? Como tem sido essa relação entre cultura, economia e desenvolvimento econômico?

No cenário internacional, quando falamos em bens culturais nos referimos a duas definições diferentes. A primeira é no âmbito do patrimônio cultural, são bens protegidos com alguma forma de tutela ou de reconhecimento pelo Estado, por exemplo, no Brasil temos a figura do tombamento, bem como a do registro dos bens culturais de natureza imaterial. Então, esses bens culturais específicos estão protegidos se, por exemplo, um quadro é tombado, ele não pode sair do país sem autorização expressa, caso para uma exposição em outro país, será emprestado com um certificado que o autoriza a sair e voltar. Em relação a esse tipo de bens culturais, temos a proteção e estimulamos a circulação e o acesso, mas com uma preocupação de protegê-los do tráfico ilícito, roubo e extravio. Por outro lado, temos uma definição mais ampla de bem cultural, ligada mais à ideia de produtos e serviços culturais, onde encontramos a indústria e a economia criativa, que incluem artesanato, moda e design, por exemplo, não só aquilo que costumamos incluir no setor artístico-cultural clássico, como um quadro, uma composição musical ou uma peça de teatro.. E digo isso porque nem sempre essa amplitude fica clara quando falamos de indústria cultural e criativa, de que setores estamos falando. No caso do Brasil, por exemplo, tivemos um crescimento importante da indústria cultural e criativa nos últimos anos, segundo as pesquisas do Itaú Cultural, principalmente nas exportações brasileiras de bens e serviços culturais desde o início dos anos 2000, com uma oscilação ali nos anos 2008 a 2014, devido à crise econômica, e bem claramente, a partir de 2014, as exportações culturais do Brasil começam a crescer mais que as importações. 

Dentro desse setor, vê-se prevalecendo sobre os outros setores: as atividades artesanais e a moda, ou seja, a produção de vestimenta e o design de roupa, ao contrário das artes cênicas e visuais, por exemplo, que ocupam o último lugar no âmbito das exportações. Em relação ao setor de patrimônio e museus, praticamente não aparecem, dando a entender que temos pouquíssimo turismo cultural, nesse sentido, não conseguimos muita atração de um público internacional interessado em consumir o que temos de oferta cultural em termos de cidades históricas e museus. Ainda predomina no Brasil o turismo de natureza, de praia, então apesar de ser um país com uma vida cultural e produção artística extremamente ricas, não vemos ainda isso refletido no nosso PIB. Acontece que temos um grande potencial, não digo isso como uma percepção sem fundamentos, mas há estudos que mostram isso em termos de dados, um dos que acho mais interessante é a ideia do poder brando, do soft power. Existem duas consultorias que fazem o trabalho de avaliar o poder brando dos países, essa capacidade de se projetar economicamente através da cultura e dos valores, compondo o que chamam de marca país, como se o país fosse uma marca a ser vendida no mercado. Uma dessas consultorias é a Portland que, conforme o último informe de Poder Brando, o Brasil entra no ranking dos 30 países mais influentes e, filtrado pelo setor cultural, está em 16º, próximo da Coreia do Sul, que, sendo um fenômeno recente da projeção cultural e economia criativa, está em 12º. Agora, no ranking de 2023 de outra consultoria, a Brand Finance, o Brasil aparece em 31º, o que representa uma queda brutal nos últimos anos em termos de poder brando. De qualquer modo, nas duas, o Brasil é o único país latino-americano que aparece entre esses primeiros 30 ou 35 países, o que está relacionado com a capacidade de produção econômica, o tamanho da população e o consumo gerado pela população em termos de número de espectadores e consumidores, etc. Ambas as consultorias têm uma visão bem mercadológica, pensam em termos econômicos e de mercado, então é um panorama limitado para compreender o poder brando, mas ainda é interessante porque segue a linha da indústria cultural e criativa. Claro, esse é só um setor dentro do que são as relações culturais internacionais e representam uma maneira de entender o fenômeno conectado mais com a parte da economia, mas como eu tentei transmitir, existem muitas outras dimensões que conectam a cultura e as relações internacionais.

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