Leonardo Leal fala sobre banco comunitário e moeda social Sururote em Maceió-AL

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A Economia Social e Solidária (ESS) compreende um conjunto de atividades econômicas e sociais, de práticas de produção de bens e serviços, finanças solidárias, trocas e comércio, moedas sociais e entre outras práticas que propõem transformações e alternativas ao modo de economia capitalista. Apesar da temática ainda estar avançando nas agendas de debates políticos, há iniciativas internacionais e locais tentando aprofundar os estudos e prover diretrizes para novos projetos de ESS. 

Mais recentemente, dentre alguns avanços que ocorreram no âmbito internacional, citamos: em 2022, houve a adoção de uma definição internacional padrão pela OIT, em sua 119º Conferência Internacional de Trabalho, e em 2023, foram lançados dois importantes documentos sobre o tema pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o ‘Guia de políticas sobre medidas de impacto social para economia social e solidária’ e o ‘Guia de políticas sobre marcos legais para economia social e solidária’. Também em 2023, a ONU publicou uma Resolução intitulada ‘Promover a economia social e solidária para o desenvolvimento sustentável’, que faz um apelo a seus membros e outras organizações a estabelecerem medidas de apoio às práticas de ESS, dentro de suas respectivas atribuições, correlacionando ainda ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Nesse cenário, vê-se o movimento crescente do interesse por parcerias entre entidades internacionais e subnacionais à medida em que boas práticas de projetos locais de economia solidária ganham notoriedade. 

 O IDeF conversou com Leonardo Leal para discutir sobre o projeto do Banco Comunitário Laguna e da moeda social Sururote, uma iniciativa de ESS de parceria multinível, entre entidades locais e instituições internacionais na cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas. 

O entrevistado comentou que, apesar de todos os esforços internacionais, a articulação internacional das iniciativas de economia solidária tem se dado principalmente a partir da organização em rede de projetos pontuais em localidades distintas, o que sugere um movimento de baixo para cima, do tipo bottom-up, e não proveniente dos empreendimentos das grandes autoridades globais no tema. Segundo o professor, o contato com outras iniciativas internacionais tem sido feito principalmente mediante o estabelecimento de parcerias, encontros, acordos de cooperação etc., com tudo isso ocorrendo de forma lenta e não estrategicamente planejada. 

Por isso, ainda que seja um tema recente nos grandes debates internacionais, há uma crescente relevância do mesmo e é preciso ficar atento a oportunidades de compartilhamento de boas práticas, elaboração de projetos e/ou de eventos que possibilitem essas trocas, bem como do diálogo proativo por parte dos projetos locais de ESS na busca por interação com outras entidades se engajando com a causa.

Entrevista com Leonardo Leal

Leonardo Leal é professor do curso de Administração Pública da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e coordenador da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária (ITES/UFAL). Em 2015, foi ganhador do Prêmio ICE – Finanças Sociais e Negócios de Impacto. Leonardo é doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e Universidade de Brasília. Possui Mestrado em Administração (Organização, Poder e Gestão) pela Universidade Federal da Bahia (2013) e Graduação em Administração pela Universidade do Estado da Bahia (2009). Além disso, foi coordenador de projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nos seguintes temas: Movimentos Sociais; Sociedade Civil; Economia Solidária; Bens Comuns; Gestão Social e Políticas Públicas.

O senhor poderia começar falando um pouco da sua trajetória profissional e a sua atuação dentro da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária (ITES)?

Eu sou natural de Salvador da Bahia. Eu nasci em Itapuã e cresci no bairro de Mussurunga, que são dois bairros periféricos urbanos da cidade de Salvador e são bastante afastados do centro. Eu estudei na Universidade do Estado da Bahia, no curso de graduação em Administração. Antes disso eu fazia parte de alguns coletivos na cidade de Salvador que discutiam propostas e alternativas anticapitalistas. Então, quando eu entrei na universidade já possuía leitura que me fizesse procurar iniciativas de pesquisa e de extensão na universidade que fossem condizentes e se adequassem às perspectivas políticas e ideológicas que eu já cultivava. Além disso, antes de entrar na universidade, fiz parte do movimento que criou a Revolta do Buzu, em Salvador. Por volta do ano de 2003, houve a Revolta do Buzu, um movimento precursor do Movimento Passe Livre no Brasil, que teve uma importância muito grande, em junho de 2013, nas manifestações em São Paulo e no Rio de Janeiro. O documentário de Carlos Pronzato sobre a revolta tem uma entrevista comigo, na época em que eu ainda era estudante secundarista. Curiosamente, entrei em um curso de Administração, que tem uma ênfase mais na área de Administração Pública. Mesmo assim o curso de administração enfatizava, à época, a crise de administração e a administração de negócios e de empresas, mas esse nunca foi efetivamente o meu interesse. Mas como eu estava naquele curso como um jovem de periferia, eu tentei transformar aquilo o melhor que eu podia fazer. Eu conheci à época dois professores, a professora Estela Rodrigues e o professor Celso Favero, que coordenaram projetos de pesquisa e de extensão com comunidades vulneráveis, sobretudo agricultores familiares no interior da Bahia. Na época eles tinham um projeto que trabalhava o tema da segurança alimentar e nutricional, que estava em alta no Brasil, no início do programa Fome Zero, precursor do programa Bolsa Família. A gente tinha um projeto para trabalhar com agricultores familiares beneficiários do Bolsa Família no território da Bacia do Jacuípe na Bahia, que compreendia em torno de 14 a 15 municípios a partir da região de Ipirá, Mundo Novo e Baixa Grande, algumas cidades de agricultura familiar. Foi o meu primeiro projeto de pesquisa ainda no segundo semestre do curso. 

Foi na universidade que eu conheci a primeira incubadora de economia solidária, a ITCP/UNEB, uma das mais antigas do Brasil. A ITCP era uma incubadora tecnológica de cooperativas populares que trabalhava com empreendimentos populares na cidade de Salvador, especialmente no bairro da Engomadeira, que é a região de influência da própria UNEB. Eles trabalhavam com uma cooperativa de panificação, com mulheres pobres do bairro da Engomadeira, e a ideia era fortalecer aquele empreendimento como uma alternativa de geração de trabalho e renda. Esses dois projetos foram muito importantes na minha formação enquanto professor, extensionista e pesquisador na universidade. 

Eu trabalhei com Estela Rodrigues e Celso Favero durante toda a minha graduação em projetos de pesquisa e extensão. Estela Rodrigues é doutora em Filosofia e Celso é doutor em Sociologia. Os dois já estão aposentados. Quando eu via a Estela Rodrigues dando aula me encantava,  ela era uma uma força muito viva. Eu olhei para aquela mulher sertaneja do interior da Bahia que também venceu muitas adversidades na vida para seguir uma carreira acadêmica e eu disse assim: “Nossa, isso que essa mulher faz na sala de aula, eu acho que eu também posso fazer. Eu acho que eu consigo fazer isso também pelo meu jeito de me comunicar e falar. Acho que é isso que eu quero da vida, fazer o que ela faz.” Eu olhava para a turma e para ela e dizia que cada dia colocaria, nem que fosse um grão de areia, em direção à construção desse caminho para ser professor e dar aula. Então, foi assim que comecei a trabalhar em projetos de pesquisa e de extensão na incubadora com eles. 

Logo depois, no ano de 2006, eu conheci o grupo de economia solidária da escola de Administração da Universidade Federal da Bahia a partir de alguns colegas e de encontros dos fóruns de economia solidária. Passei a frequentar as reuniões e atividades da incubadora da UFBA, coordenada pelo Professor Genauto França Filho e, a partir disso, ele me convidou para ser bolsista de um projeto de extensão na comunidade de Matarandiba, um projeto novo que estava começando na Ilha de Itaparica. Esse projeto foi a maior experiência de minha vida, em termos de experiência acadêmica universitária e de projeto de pesquisa e extensão. Eu me formei nesse projeto e fiz o meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre essa experiência. Trabalhei lá durante sete anos consecutivos. Nesse projeto me formei e fiz o meu mestrado. Depois fui coordenar um outro projeto da incubadora, um projeto nacional financiado pelo Ministério do Trabalho, na época, e fiquei trabalhando profissionalmente em muitos projetos simultâneos na incubadora. Mesmo antes de me formar, já estava trabalhando mais profissionalmente na coordenação de projetos de extensão, apoiando experiências de bancos comunitários e moedas sociais no Brasil inteiro, inclusive na Paraíba. As primeiras experiências na Paraíba, no banco Jardim Botânico da comunidade São Rafael, fui eu quem implantei. Conheço muito bem João Pessoa, trabalhei muito tempo com o professor Maurício Sardar, que nos deu apoio e que era professor da UFPB do curso de Administração Pública e hoje está na Federal Rural de Pernambuco. Ele foi um dos criadores da incubadora junto com outros professores da Pedagogia e da Administração Pública, como Vanderson, um professor doutorado em Economia Solidária. 

Quando eu entrei como professor na UFAL em 2015, eu era coordenador desse projeto nacional de apoio a bancos comunitários. Assim que entro na UFAL, um dos meus primeiros projetos é criar a incubadora de economia solidária. Então, com toda a minha experiência de trabalhos na incubadora da UFBA, coordenando projetos, ações e construindo outras incubadoras, eu criei uma incubadora na UFAL, trazendo parte do recurso que eu administrava do projeto nacional. A gente criou o primeiro banco comunitário em Alagoas, que é o banco comunitário Olhos d’Água, na cidade de Igaci, com a moeda social Terra com a Associação de Agricultores Alternativos (AAGRA), uma associação muito poderosa no interior de Alagoas. 

Mais tarde, o pessoal do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realiza um projeto na cidade de Maceió e eles me convidam para criar a moeda social do projeto, e que termina se tornando um banco comunitário, o Banco Comunitário Laguna. A gente inicia o projeto por volta de 2018 e 2019. Enquanto isso, eu já estou no meio do doutorado em Ciência Política na Universidade de Brasília e na Universidade de Lisboa. Eu morei dois anos em Lisboa para o doutorado. Estudo governança democrática em experiências de bancos comunitários e bancos éticos. Eu estudo 14 casos no Brasil e na Espanha. Os bancos comunitários no Brasil e bancos éticos na Espanha possuem experiências similares.

A moeda solidária Sururote surge como uma forma de buscar soluções econômicas e ambientais locais. A moeda é obtida por meio das cascas de Sururu (um marisco) e auxilia na limpeza ambiental e no desenvolvimento da localidade. Quais são as particularidades desse projeto? Ele surge a partir de algum modelo e pode ser replicado? 

A comunidade Vergel do Lago na cidade de Maceió fica às margens da Lagoa Mundaú, que vive da coleta de casca de sururu, que é um molusco bivalve. Então, ali no Vergel do Lago, trabalhei em uma das comunidades mais pobres que eu já conheci no Brasil, com vários marcadores sociais de pobreza e desigualdade que atingem diretamente as famílias que vivem no Vergel e pressionam o seu nível de renda para muito baixo. A alternativa do extrativismo de sururu buscava, em certa medida, mudar isso, mas o modo de vida não era suficiente para prover renda para as pessoas e para viver de maneira digna. O projeto procurava tanto alternativas de trabalho e renda para as pessoas quanto também reduzir os impactos ambientais ali gerados pelas diversas ações humanas na comunidade.

Molusco sendo extraído da casca. Foto: Divulgação | Fonte: @mrosenbaum

O projeto tinha duas iniciativas importantes: uma era pensar a transformação de produtos que pudessem ser produzidos pela comunidade a partir de recursos locais e o outro era a criação de uma moeda social. A primeira iniciativa do projeto era mobilizar a comunidade através do Instituto Mandaver, para processos de capacitação e formação para o desenvolvimento local e para a economia circular na comunidade. Essa iniciativa teve como resultado a criação de um produto de arquitetura e design que ficou conhecido como Cobogó Mundaú. Foi pensado pelo artesão da comunidade em parceria com os designers Marcelo Rosenbaum e Rodrigo Ambrosio. Hoje existe uma pequena fábrica na comunidade que contrata pessoas da comunidade para produzir esse cobogó. O principal insumo do cobogó é o resíduo da casca de sururu. Como é que se adquire a casca de sururu e faz esse cobogó? Antes, a casca de sururu era lixo. A prefeitura gastava mais de 200 mil reais por mês para coletar esse resíduo de casca da comunidade, que ficava pelas ruas em grandes montanhas. Hoje parte dessa casca de sururu é comprada das mãos das famílias e das mulheres marisqueiras cadastradas no projeto com a moeda social. 

Nós criamos a moeda social para criar um circuito de economia circular na comunidade. Nós compramos com a moeda social essas cascas de sururu de mais de 200 famílias. Com o recurso que é comprado das cascas de sururu, as mulheres podem utilizar na economia local, já que os comércios locais aceitam a moeda social. Com a venda dos cobogós, que são vendidos no grande mercado da arquitetura e design a altos valores, alimenta-se um fundo da associação que serve para pagar os trabalhadores da fábrica de cobogó e também para lastrear a moeda social. A moeda Sururote é lastreada.

Além disso, nós criamos também o Banco Comunitário Laguna. O Banco Laguna oferece microcrédito para comunidade, para os empreendimentos locais e para as famílias locais investirem em pequenas atividades produtivas e com isso gera trabalho e renda para as pessoas. Essa dinâmica do cobogó da Mundaú se conecta com a dinâmica da moeda social Sururote. As pessoas têm acesso à moeda social Sururote por dois meios: ou vender a casca de sururu ou tomando microcrédito no banco comunitário. 

Peça de cobogó feita da casca de Sururu da lagoa Mundaú apresentada pelo artesão. Foto: Divulgação | Fonte: @mrosenbaum

O senhor falou que o processo do projeto do Banco Laguna foi junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento. Poderia falar como o BID contribuiu para criar o Laguna? Além disso, houve algum outro apoio? 

O papel do BID foi de financiador dos recursos do projeto que foram necessários para a contratação dos profissionais, tanto da universidade quanto de fora. O investimento para criação da fábrica de cobogó, do banco comunitário, do fundo de crédito e da criação da moeda social foram oriundos do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Esses recursos foram operados pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público que tem sede em Brasília e em Maceió. O IABS foi a organização gestora principal do projeto e foram eles que operaram a relação contratual com o BID. 

Como o contato com o BID se desenvolveu?

Isso foi através de um comitê para o desenvolvimento sustentável no Estado de Alagoas, que envolve o governo e organizações governamentais, como o BID e o PNUD da ONU. Então foi através dessas articulações que surgiu a ideia de realizar esse projeto no bairro Vergel do Lago. Os participantes desse comitê resolveram convidar pessoas que tinham projetos inovadores sendo realizados no Brasil, como o projeto do Banco Olhos d’água, anterior ao projeto do Banco Laguna, que se tornou um projeto muito exitoso e terminou sendo conhecido a nível nacional, aí vários projetos nossos se tornaram conhecidos. Então, é relativamente recorrente convites de organizações governamentais e não governamentais de comunidades e de financiadores para a gente participar como parte da estratégia de desenvolvimento local de comunidades pobres e vulneráveis.

Além do BID, teve alguma outra instituição internacional que também fez parte da criação do projeto?

O pessoal do Centro de Inovação em Tecnologia para o Desenvolvimento (ITD) da Universidade Politécnica de Madrid (UPM) também fez parte como consultores externos. O itdUPM são grandes parceiros do IABS. Eu já tive várias oportunidades de ministrar curso juntos e também conheço alguns pesquisadores do itd.

Como foi o funcionamento da parceria do comitê? 

O comitê era responsável por definir toda estratégia de ação do projeto. Então era um comitê onde tinha participação de várias organizações comunitárias governamentais e não governamentais na definição da estratégia do projeto na comunidade do Vergel do Lago. Era composto por secretarias da Prefeitura Municipal de Maceió, secretarias do Governo do Estado de Alagoas, por membros do IABS, membros do itd da Universidade Politécnica de Madrid e membros do BID também. 

O comitê estratégico do projeto tem alguma recorrência de funcionamento?

O comitê foi extinto porque a execução do projeto foi encerrada. O projeto tinha um prazo de execução e todas as metas foram atingidas e alcançadas. Era um comitê que existia para a governança do projeto.

A Prefeitura Municipal de Maceió participou do projeto de que maneira? Houve apoio oferecido por eles?

A Prefeitura de Maceió teve um papel muito importante na realização do projeto porque eles articulavam em um conjunto de iniciativas que eram importantes para o projeto, sobretudo no que diz respeito a equipamentos públicos de limpeza urbana. Foi instalado um equipamento público de limpeza urbana na comunidade do Vergel, onde pudesse concentrar a coleta de lixo e pudesse ter um ponto que fosse de suporte para os trabalhadores da reciclagem. Então foi montada uma infraestrutura de suporte para tratamento de resíduos sólidos, tanto a casca de sururu, quanto outros resíduos sólidos que eram um grave problema da comunidade. Nessa questão da limpeza urbana, a prefeitura participava ativamente dos processos de organização do projeto, naquilo que eles podiam atuar.

O senhor poderia falar se existiram dificuldades enfrentadas no processo de conscientização, principalmente das marisqueiras, e o que contribuiu para que o projeto tivesse êxito dentro da comunidade diante das possíveis dificuldades? 

No trabalho que a gente faz na incubadora, uma das etapas fundamentais no início dos projetos, é uma primeira etapa de sensibilização e mobilização da comunidade. A gente faz um trabalho importante de sensibilizar e mobilizar a comunidade para o tema do projeto da organização comunitária, do desenvolvimento local e da economia solidária. São feitas campanhas de mobilização, encontros e reuniões.

Uma outra etapa também é desenvolver ações de capacitação e formação. A gente realiza minicursos na comunidade local sobre a economia solidária, o associativismo, como podemos organizar a comunidade para superar alguns dos seus desafios e mostrar que a organização comunitária pode ser uma chave muito importante para o processo de auto-organização da comunidade.

A gente faz tudo isso mediante processos de mobilização, campanhas de comunicação e de divulgação e processos de formação e capacitação das pessoas, utilizando metodologias e abordagens de formação que sejam adequadas para esse público da comunidade, um público muitas vezes não letrado.

Houve resistência dentro da comunidade à aplicação do projeto ou as etapas do projeto fluíram de forma tranquila a partir da conscientização?

Nessa experiência, eu acho que não houve resistência. Primeiro porque contamos com a participação, o interesse e a integração do Instituto Mandaver, que é uma associação comunitária, de pessoas da comunidade do Vergel do Lago, que tem um vínculo muito forte com a comunidade. É uma associação muito bem organizada constituída por pessoas que são do bairro e que tem uma capacidade de mobilização e de comunicação muito grande com as pessoas da própria comunidade. Para nós esse tipo de relacionamento com associações comunitárias é indispensável para o êxito do projeto. Essa dinâmica pra gente é uma condição incontornável: constituir relações de confiança e de parceria com organizações comunitárias que possam fortalecer o processo de mobilização. Não somos nós que mobilizamos a comunidade diretamente, a gente conta com parcerias e cooperações estratégicas dentro da comunidade para fazer isso. Sem isso, talvez não seria possível o êxito do projeto.

Como o senhor avalia esse projeto atualmente? Como descreveria os impactos que foram causados na comunidade?

Essa é uma boa pergunta, mas desafiadora porque é difícil de responder. A gente ainda não conseguiu efetivamente mensurar tecnicamente esses impactos, mas eu destacaria três tipos de impactos que eu acho importante. O primeiro impacto mais visível é um impacto econômico, porque o objetivo do projeto sobretudo do banco comunitário e da moeda social é ampliar e fortalecer o fluxo de renda interno na comunidade. 

Então o nosso objetivo é fazer com que a renda e a riqueza passe a circular mais na comunidade para que os Empreendimentos e as famílias da comunidade a retenham. Esse é um passo fundamental nos processos de superação de condições de desigualdade, de pobreza e do aumento de renda para as famílias. Como é que a gente faz circular o fluxo na comunidade e retê-la? Para circular e reter a gente precisa de circulação interna monetária, e a moeda social é estratégica nisso. Mas para reter a renda na comunidade a gente precisa criar iniciativas que são geradoras de produtos, de bens e de prestação de serviço. Para que as pessoas possam ser remuneradas pela produção dos seus produtos e pela prestação dos seus serviços. O banco comunitário atua nas duas coisas: aumentar a circulação de renda por meio da moeda social Sururote, o que evita a fuga de renda para fora do território, afinal, a moeda social só é aceita na comunidade, e investir em pequenos negócios na comunidade, que possam aumentar a oferta de produtos e de serviços para a comunidade interna e externa. Então o impacto econômico é o primeiro aspecto.

Um segundo aspecto que eu vejo é o impacto político. A comunidade passa a se auto organizar mais, passa a ter uma organização comunitária representativa dos seus interesses, de suas necessidades, de suas demandas. E que pode vocalizar isso diante do poder público, diante de outras entidades e de outras organizações. Isso foi muito visível na comunidade do Vergel do Lago. Mais ou menos uns dois anos após o início desse projeto, o presidente do Instituto Mandaver foi convidado para ser o Secretário Municipal de Assistência Social do município de Maceió. Ele ficou lá por dois anos e depois retornou às bases, ao seu trabalho na comunidade. O nome dele é Carlos Jorge, uma figura incrível e um grande comunicador da comunidade. 

Esse impacto político é muito importante nesses processos porque a comunidade precisa não só assumir a gestão de empreendimentos, mas também o protagonismo político dos seus interesses e de suas demandas, de ser uma instituição de mediação entre a comunidade e o poder público. Já que muitas dessas comunidades pobres não possuem instituições e organizações que possam mediar as suas necessidades e seus interesses para comunicar ao poder público, as associações comunitárias passam a cumprir esse papel. O Instituto Mandaver hoje cumpre esse papel de mediação de interesses, ocupa cadeiras em conselhos municipais de políticas públicas e têm acesso direto a secretários e ao prefeito. 

Quando a comunidade passa a contar com o processo de aprendizado?

Esse é o terceiro  impacto: o  pedagógico.  A comunidade passa a contar com aspectos de aprendizado, que apresentam e ensinam para as pessoas que existe a possibilidade de desenvolver habilidades, conhecimentos e métodos que podem ajudar no desenvolvimento de novas estratégias de vida, de sobrevivência, de organização de trabalho e de renda. E também a valorizar o saber e o conhecimento, porque a gente passa a valorizar os conhecimentos que essas pessoas adquiriram pela sua experiência de vida. E como esse encontro entre o saber acadêmico e o saber não acadêmico podem se somar e contribuir na cooperação e geração de novas organizações, de novos serviços, de novos produtos, de novas tecnologias ou mesmo de uma nova ciência.

Uma ciência que se produz e se reproduz por meio do diálogo e da cooperação com as comunidades. No que diz respeito à organização da vida, do trabalho, da renda, numa comunidade urbana periférica pobre e vulnerável. Como é o caso do Vergel do Lago. Dessa forma, eu identifico pelo menos esses três tipos de impacto: um impacto econômico, o impacto político e o impacto pedagógico, de aprendizagem e de desenvolvimento de novas habilidades.

O senhor falou um pouco sobre a importância dos bancos comunitários. Gostaríamos de saber se o senhor acredita que os bancos possuem capacidade de se internacionalizarem. Há também, por parte do projeto,  o interesse ou a perspectiva de estabelecer maior contato com o cenário internacional? 

Eu acho que é o seguinte: os bancos comunitários adotam a estratégia de difusão e de transferência de suas práticas a partir de um processo de organização em rede. Então, no lugar de crescer e ampliar sua atuação, multiplica-se em novas células. Isso quer dizer, por exemplo, que um  banco comunitário como o do Vergel não vai crescer e começar a prestar serviços em outras comunidades. Ele vai multiplicar aquela experiência para que outras comunidades repliquem o seu método. A estratégia dos bancos comunitários até hoje tem sido fundamentalmente a de multiplicar o modelo de bancos comunitários. É uma experiência que surgiu com o banco Palmas no Brasil e cada vez mais outras estão replicando essa experiência, metodologia e abordagem. É o que aconteceu aqui no Vergel. Esses bancos comunitários passaram a organizar uma rede brasileira de bancos comunitários. Atualmente, essas experiências dos bancos comunitários no Brasil se tornaram conhecidas internacionalmente. É conhecido no mundo inteiro a experiência do Banco Palmas e das moedas sociais brasileiras. 

No entanto, não tem tido um processo de difusão a nível internacional, mas o que tem acontecido são parcerias e encontros. Atualmente eu tenho ensaiado um diálogo entre os bancos comunitários e os bancos éticos na Espanha, com a ideia de promover um acordo de cooperação entre essas experiências, entre a Rede Brasileira de Bancos Comunitários e a Federação Europeia de Bancos Éticos. A ideia de pensar acordos de cooperação para fortalecimento dessas iniciativas que têm pontos de similaridade entre as experiências no Brasil e as experiências na Europa, especialmente na Espanha. Dessa forma, eu vejo que há um horizonte, uma possibilidade de pensar acordos de cooperação nesse sentido. 

Nesse momento os bancos comunitários brasileiros junto com as cooperativas de crédito solidário estão dedicados à criação do Sistema Nacional de Finanças Solidárias. Essa é uma iniciativa importante também nesse momento, o que ocupa a atenção dos bancos comunitários. Mas o mais importante agora é também pensar nessa articulação a nível internacional, que eu acho que é um ponto de partida interessante, mas digo já que não é algo tão visível ainda embora frequentemente os bancos comunitários são convidados a vários fóruns internacionais para apresentar suas experiências. Recentemente, durante a pandemia, no Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras, os bancos comunitários tiveram um papel importante. A próxima edição, no ano que vem, será na Colômbia e acredita-se que os bancos também terão uma participação fundamental no encontro internacional. 

Foto: Divulgação | Fonte: @mrosenbaum

Como o projeto funcionou durante e após a pandemia? E, atualmente, com os impactos da Braskem?

Fomos atingidos em cheio pelas consequências da pandemia de modo que no meio do processo, pouco antes da inauguração, tivemos que transformar as nossas atividades para encontros remotos, o que prejudicou muito. Em certo momento o nosso trabalho teve que ser estendido por mais tempo, com a expectativa de que a pandemia fosse arrefecer, o que não aconteceu. Desse modo, tivemos que fazer uma inauguração muito tímida do projeto, que ganhou mais fôlego quando os efeitos da pandemia já tinham sido mais acometidos. Houve um impacto muito grande da pandemia no desenvolvimento das atividades. Os encontros tiveram que ser convertidos para encontros virtuais, sendo que a comunidade tem uma dificuldade muito grande de acesso à internet e muita gente não pode participar de algumas etapas do projeto, o que tentamos compensar posteriormente. 

Hoje, o desastre da empresa Braskem, ali nas margens da Lagoa Mundaú, está causando um impacto ambiental para o modo de vida das pessoas que vivem às margens da lagoa, que coletam os recursos naturais da lagoa para sobreviver e tem vários estudos mostrando os impactos ambientais desse desastre. Esse é um impacto generalizado na região das comunidades da Lagoa, mas a do Vergel do Lago não está na área de incidência dos efeitos do desastre da Braskem. De modo que, apesar de não ter dados tão precisos sobre, acredito que o impacto tem muito mais a ver com os trabalhadores e as famílias da Lagoa Mundaú que dependem do extrativismo de Sururu e que hoje estão impedidas de viver dessa atividade. Então, esse impacto tem provocado uma desorganização generalizada, sobretudo aquelas famílias mais vulneráveis que vivem do extrativismo da Lagoa. 

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