
Curitiba, capital do Paraná, é amplamente reconhecida como uma das cidades mais sustentáveis da América Latina. Com políticas públicas inovadoras, como a adoção de ônibus elétricos – com zero emissão de poluentes – e a criação de parques alagáveis, a cidade demonstra que o meio ambiente e as mudanças climáticas ocupam lugar central em sua agenda.
Um dos principais exemplos desse compromisso é o CONRESOL – Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos –, formado por Curitiba e municípios da Região Metropolitana. O CONRESOL desempenha um papel estratégico na implementação de soluções conjuntas para a gestão de resíduos sólidos, e se destaca no contexto do PlanClima (Plano de Adaptação e Mitigação das Mudanças Climáticas de Curitiba), que reúne esforços locais para enfrentar os efeitos do aquecimento global.
Entre as iniciativas mais relevantes lideradas pelo consórcio está o novo sistema de tratamento de resíduos da cidade, desenvolvido em parceria com a ABCP (Associação Brasileira de Cimento Portland). Esse projeto prevê a substituição do coque de petróleo por CDRU (Combustível Derivado de Resíduos Urbanos) nas cimenteiras, além da eliminação do uso de aterros sanitários. A expectativa é de uma expressiva redução na emissão de dióxido de carbono, alinhando a gestão de resíduos à agenda climática internacional.
Para compreender mais a fundo essas ações, conversamos com Rosamaria Milleo Costa, Secretária Executiva do CONRESOL e uma das principais articuladoras dessas transformações. Com ampla experiência na área, Rosamaria compartilha os desafios, avanços e resultados das políticas implementadas, oferecendo um panorama aprofundado sobre a atuação do consórcio e o papel de Curitiba como referência em sustentabilidade urbana. Rosamari Milleo é advogada, especialista em Direito Administrativo e Engenheira Química, mestre em Tecnologia Química pela UFPR. Atualmente é Secretária Executiva do Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos. Atuou como Procuradora Geral do Município de Almirante Tamandaré e Assessora Jurídica da COMEC e do próprio Consórcio.
IDeF: Em nossas pesquisas, vimos que a cidade de Curitiba é líder em sustentabilidade desde os 1980 e hoje é reconhecida como a cidade mais sustentável da América Latina, de acordo com dados da revista canadense Corporate Knights. Conforme a sua vasta experiência como Secretária Executiva do CONRESOL, como a senhora avalia a importância desse status de cidade sustentável? Esse reconhecimento internacional gera algum impacto nas políticas públicas voltadas para o combate à poluição?
Rosamaria: Sim, gera. Para contextualizar, o CONRESOL (Consórcio Intermunicipal para Gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos) é composto por 26 municípios da região metropolitana, Curitiba e mais 25 municípios. A região tem 29 municípios, somente 3 não fazem parte. Então, o reflexo da política do CONRESOL ultrapassa a fronteira de Curitiba, ela é quase metropolitana hoje. A gente atingiu 3 milhões de habitantes, numa extensão territorial de 13.000 km². E, sim, o Consórcio está intimamente ligado com as políticas de redução de poluição e toda forma de combate. Inclusive, ele faz parte do PlanClima de Curitiba, uma representação do PlanClima.
O primeiro impacto é o transporte público e o segundo é a parte de resíduo, então, todo nosso trabalho hoje está sendo feito nessa direção, com a orientação do C40 e do PlanClima, e isso trazendo todos os outros 25 municípios para esse trabalho. Então, tem a busca do Consórcio de reduzir o envio de resíduos, fazer o aproveitamento do resíduo, introduzir tecnologias que, social e economicamente, proporcionem o aproveitamento. Então, tem um impacto na nossa política e nossa política é conduzida nessa direção.
IDeF: A iniciativa da cidade de Curitiba que mais nos chamou a atenção foi o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos (CONRESOL), que permite o uso do Combustível Derivado de Resíduos Sólidos (CDRU) como substituto energético do coque de petróleo. Como surgiu esse consórcio municipal para gestão de resíduos? Que impactos ele tem proporcionado na gestão dos resíduos sólidos? Também verificamos que recentemente foi assinado um acordo de cooperação entre a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) que vai possibilitar o uso do CDRU comocombustível para a fabricação de cimento pelas empresas locais. Como a substituição do coque de petróleo por CDRU vai beneficiar a cidade e contribuir para o objetivo de controlar os resíduos sólidos produzidos?
Rosamaria: O consórcio surgiu em 2001, então ele vai fazer 24 anos agora. Antes de 1989, existia um lixão e, em 1989, surgiu o aterro sanitário Caximba, mas até que fosse criado o aterro sanitário e começasse a funcionar, Curitiba depositou seus aterros junto a uma área no município de Almirante Tamandaré e, depois, os dois municípios juntos foram depositar em uma outra área em São José dos Pinhais. Quando o aterro de Curitiba começou a funcionar, os três já estavam juntos e vieram juntos para o aterro sanitário de Curitiba. Os municípios tinham um convênio com Curitiba, então, na verdade, o Consórcio surgiu dessa ideia prática de unir forças para uma determinada atividade pública. Depois vários municípios aderiram a esse convênio e chegou o momento que foi criado o Consórcio com esses municípios que já faziam parte.
O consórcio tem várias iniciativas. Nós tivemos uma iniciativa em 2007, que buscava a introdução de tecnologia para possibilitar o desvio de resíduo bruto no aterro e seu aproveitamento, não só como CDRU, mas como energia, compostagem e aproveitamento do reciclado. Foi uma licitação que ficou até 2014 e tivemos mais de 60 ações judiciais nela. Em 2014, ela foi revogada e, em 2019, nós voltamos com uma outra iniciativa de uma concessão, também prevendo tecnologias, uma concessão em que várias unidades pudessem ser plantadas ao longo da nossa região, que é 13.000 km². Só que a gente viu também que ela ia ser judicializada. Paralelamente a essa concessão, nós trabalhamos com a ABCP (Associação Brasileira de Cimento Portland), porque nós temos na região do Consórcio 3 cimenteiras. Uma em Adrianópolis, uma em Rio Branco do Sul (agora também com Itaperuçu), e a outra em Bolsa Nova, que agora são municípios integrantes. Então nós começamos a conversar com as cimenteiras sobre o uso do CDRU como substituto do coque de petróleo, essa conversa do Consórcio com a ABCP gerou um termo de cooperação técnica e eles participam da nossa solução.
Paralelo a isso, nós apoiamos Curitiba, porque ela tem mais de 40 associações de catadores que faziam o trabalho com o resíduo reciclável. Entretanto, o rejeito desse resíduo reciclável ia para o aterro sanitário. Nós começamos a fazer um trabalho com as associações, com o treinamento das cimenteiras, mostrando para eles que ao separar adequadamente esse rejeito, ou o material que não teria aproveitamento, esse material poderia ser vendido e utilizado como substituto do coque e isso foi feito. Só que a cimenteira tem uma relação direta com a associação de catadores. É um resíduo que não passa por nós. O Consórcio trabalha com o resíduo da coleta convencional, que vem misturado, mas esse é um resíduo que vem da coleta seletiva ou do contato dos catadores com shoppings e grandes geradores. Então, nós começamos a realizar uma análise técnica ambiental com o IAT (Instituto Água e Terra), verificando a possibilidade da queima, de fazer todos os testes, e isso se mostrou muito viável de ser utilizado. Nesse meio tempo, nós também nos preparamos para receber esse tipo de resíduo. Então existe esse rejeito das associações e eles têm um contrato, ele recebem por esse resíduo.
Nós do Consórcio junto com a ABCP e o IAT, abrimos um edital de credenciamento 001/2024 que trata da prestação de serviço de tratamento dos resíduos e disposição final do rejeito, numa ideia de introduzir o tratamento. Neste edital, nós não deixamos de buscar tecnologia, então, ele está aberto até dezembro de 2025 (no nosso site que fica na Secretaria de Meio Ambiente de Curitiba), para as empresas apresentarem proposta. Se, por exemplo, vier uma empresa com uma proposta da parte de gás, do orgânico ou de compostagem, ela fica livre para fazer a rota tecnológica, desde que tenha o nosso principal nesse processo, o licenciamento ambiental.
Nós vamos fazer o licenciamento ambiental das empresas de tal maneira: se a empresa nos apresentar a licença prévia, com os demais documentos, ela vai receber uma expectativa de credenciamento. A partir disso, ela vai ter um ano para instalação, vai ter um tempo de pré-credenciamento e quando ela apresentar a licença de operação, então, ela vai poder assinar o contrato e prestar o serviço para o Consórcio. Nós abrimos primeiro o credenciamento porque abrimos a oportunidade para qualquer empresa que queira se implantar e vir. Não fechamos porque a licitação não tem um vencedor, o credenciamento é para quem se interessa pelo processo e vai receber um valor fixo pela tonelada de resíduos. E também porque a nova lei de licitações regula o credenciamento. Um dos produtos que podem vir é o CDRU.
Sobre o CDRU nas cimenteiras. As cimenteiras aqui têm capacidade de recebimento de 200-300 mil toneladas/ano e isso é quase a produção se pegássemos todo resíduo que vai para o aterro sanitário hoje e fizéssemos o aproveitamento. Ele poderia absorver toda a produção do CDRU desse resíduo. É muita capacidade das cimenteiras e eles também têm interesse em receber esse CDRU. No último ano, nós tivemos a disposição em média de 2.800 toneladas/dia de resíduo, o que resulta em 890 mil toneladas no ano passado. Então, realmente é muito resíduo e muito campo para trabalhar o aproveitamento desse resíduo, não só aterrar. Mostramos isso para as associações, houve uma inversão dos conceitos nas associações de catadores. Isso é muito importante.
O impacto do CDRU é muito forte. Se você considerar a substituição do coque e mais a não destinação do resíduo ao aterro sanitário, essas duas coisas juntas promovem a redução na emissão de dióxido de carbono em 1.4 toneladas. Significa que, a cada tonelada processada cerca de 1.4 toneladas deixam de ser emitidas. Então, é muito vantajoso fazer o tratamento dos resíduos. Nossa relação vem dos acordos de Curitiba com o C40 exatamente para questões de contenção de mudanças climáticas e, realmente, é um compromisso de segurar o efeito das mudanças climáticas. Esse é o trabalho mais recente do Consórcio com essa implantação de tecnologia.
No nosso edital, colocamos uma meta bem forte. De todo o resíduo que entrar em tratamento, no máximo 50% pode ser destinado para o aterro. Os outros 50% têm que ser reaproveitados, reduzindo pela metade a quantidade de resíduo que vai para o aterro sanitário. De acordo com as tecnologias que nós temos no mercado, essa é uma meta ousada, mas viável.
É uma contribuição significativa para as cidades, porque o aterro sanitário é reduzido, assim como a emissão de dióxido de carbono na linha de produção das cimenteiras.
IDeF: Esse projeto é inspirado em experiências de outras cidades ou é uma iniciativa inédita da cidade de Curitiba? Com certeza, hoje é inspiração para uma grande rede, inclusive sendo premiado pelo DFBW Award.
Rosamaria: Nós sempre temos inspiração fora do Brasil e sabemos que a realidade do país em relação a resíduos ainda é muito difícil, em muitos municípios ainda existe lixão, apesar de já haver iniciativas e tecnologias para resolver isso. Então, nós temos inspirações na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, no entanto, o aspecto da construção e elaboração dos projetos têm características muito regionais porque somos nós que conhecemos cada realidade.
Então todos os estudos foram feitos por técnicos dos municípios que fazem parte do consórcio, nós não contratamos ninguém de fora para fazer isso.
Por exemplo, nós temos uma extensão de 3 mil km2, nós não podemos deixar que uma empresa se instale na divisa entre Santa Catarina e São Paulo, porque fica muito distante do contexto dos outros municípios.
Então, tecnicamente, nós definimos o local de implantação das empresas nos nossos corredores de BRs, fazendo um círculo em toda a região. Portanto, estudos como esses devem partir da visão dos técnicos dos próprios municípios, por conhecerem aquela necessidade.
Com inspiração nas tecnologias que vêm de fora, a concepção da ideia, o desenho do projeto e a implantação são expertise nossa. É uma criação nossa, olhando para a nossa realidade.
IDeF: Incrível! É realmente importante que políticas públicas sejam pensadas por quem realmente vivencia aquela realidade, a fim de que sejam realmente eficazes. É interessante o fato da política ser inspirada em experiências internacionais, mas ser criada e desenhada por atores locais é um grande saldo em relação a outros atores que fazem cooperação descentralizada.
Também é importante destacar a relevância da parceria público-privada como mecanismo de união entre as necessidades públicas e os interesses e objetivos da esfera privada, que fazem parte desse contexto e que são importantes para a geração de emprego na região. Pensando nessa rede de parcerias e em como essas políticas se desenvolvem, é perceptível que a mobilidade urbana é um desafio no combate à poluição urbana. Curitiba tem realizado uma série de mobilizações nesse setor, como a utilização de ônibus elétricos, por exemplo. Nós mapeamos que há uma parceria internacional com a rede C40 que permitiu a implantação de caminhões elétricos para acoleta seletiva na cidade. Diante disso, gostaríamos de saber como a parceria foi estabelecida, como se deu o diálogo e, se já é possível perceber alguma diferença em relação a emissão de carbono e melhoria na qualidade do ar.
Rosamaria: Na parte de coleta eu não participei, o que nós participamos com o C40 é na disposição final dos resíduos. O consórcio é responsável pela gestão do tratamento e destinação final dos resíduos.
O consórcio funciona sendo composto por um conselho técnico e um conselho fiscal, contendo um titular e um suplente de cada município integrante do consórcio, além da assembleia geral composta pelos prefeitos. Então, qualquer assunto nosso é tratado tecnicamente em primeira instância e, após isso, é levado para deliberação dos prefeitos. Então, todos os municípios têm conhecimento e acompanham ativamente o desenvolvimento dessa solução. Nós conseguimos fortalecer a iniciativa porque temos essa rede dos técnicos municipais que nos dão apoio
IDeF: Isso que a senhora falou é muito bom porque toca em um ponto crítico para as políticas públicas: a importância de que elas tenham continuidade. A iniciativa parte desse aspecto estritamente local e passa a fazer parte de uma rede mais ampla, onde outros atores estão conectados e se beneficiam conjuntamente com os resultados.
Rosamaria: Inclusive, sempre nos perguntam “como é que fica quando há a mudança de prefeito?”. O nosso assunto sempre foi tratado tecnicamente, que é a primeira esfera, e quando chega aos ouvidos dos prefeitos eles encaram isso de maneira bem técnica também. O partido dos prefeitos não é relevante para a política, mas a decisão que é tomada junto do corpo técnico e assim nós conseguimos minimizar essas interferências.
Agora mesmo estamos em uma fase de mudança de gestão em alguns municípios, mas o trabalho do consórcio segue da mesma forma em todos os municípios. Ou seja, o que proporciona isso é o trato técnico do assunto.
Lá no início, em 2008, para os municípios entenderem o que é o consórcio e como tudo isso funciona, houve algumas dificuldades, até para o recebimento de valores, porque nós não temos recurso, nem estadual, nem federal, os recursos são todos municipais. A cada ano, realizamos a proposta orçamentária que deve ser aprovada por conselho técnico, conselho fiscal e assembleia e dessa proposta sai uma resolução a ser firmada em contrato com todos os municípios.
Nessa trajetória de mais de 20 anos, conseguimos realizar uma construção bem bacana. Tivemos as mudanças na Lei de Licitação e também nos adaptamos muito bem, porque já seguíamos as diretrizes do projeto de lei então só alinhamos a jurisprudência.