Milson Serafim (MDA/ES) conversa com o IDeF sobre o projeto Cotton Solos

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O nosso entrevistado foi Milson Evaldo Serafim (Agrônomo da Superintendência Federal do MDA – Espírito Santo), que falou com o IDeF sobre o Projeto Preservação do Potencial Produtivo das Zonas Produtoras de Algodão no Mali – Cotton Solos e seu papel na criação de parcerias internacionais para promoção de práticas agrícolas sustentáveis.

Milson Evaldo é Serafim graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2004), com mestrado pela Universidade Federal da Grande Dourados (2007) e doutorado em Ciência do Solo pela Universidade Federal de Lavras (2011), área de concentração Recursos Ambientais e Uso da Terra. Desde 2010, é professor no IFMT Campus Cáceres-Prof. Olegário Baldo, e desde janeiro de 2024, é servidor requisitado no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Ele realizou pós-doutorados na The Ohio State University, no Carbon Management and Sequestration Center, C-MASC (2018), e no Departamento de Ciência do Solo da Universidade Federal de Lavras, DCS/UFLA (2023), com foco em manejo e conservação do solo e água, e manejo do solo para cotonicultura no Mali, África Ocidental. Em 2023, realizou capacitação profissional para uso de aparelho PXRF e NIX. Ademais, tem experiência em Agronomia, com ênfase em disponibilidade hídrica e sistemas conservacionistas de manejo do solo e água.

IDeF: Durante nossas pesquisas, verificamos que o projeto “Preservação do Potencial Produtivo de Zonas Produtoras de Algodão no Mali” (Cotton Solos) nasceu da parceria entre a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, e o Governo malinês, representado pela Companhia Malinesa para o Desenvolvimento Têxtil (CMDT). O objetivo é aumentar a produtividade do algodão de forma sustentável e contribuir para a segurança alimentar das comunidades locais por meio da diversificação de culturas. Nossa primeira pergunta é: por que o Mali, e como esse projeto começou?

MILSON: Perfeito. Esse projeto vem de uma demanda bastante antiga na OMC (Organização Mundial do Comércio). Em 2002, agricultores brasileiros fizeram uma representação na OMC informando que os subsídios dos Estados Unidos para os produtores de algodão daquele país tornavam a concorrência entre o algodão brasileiro e o americano desleal.

Essa representação foi avaliada e, em 2004, a OMC julgou que era procedente. Porém, os Estados Unidos não aceitaram a decisão e recorreram em 2005. Após o recurso, a OMC novamente julgou procedente a denúncia de concorrência desleal, cabendo uma compensação ao Brasil. Os Estados Unidos não pagaram essa compensação, e o processo se arrastou por alguns anos.

Em 2009, a OMC autorizou o Brasil a adotar medidas contra os Estados Unidos por não respeitarem as regras da organização – como quebrar patentes americanas ou adotar outras ações. O Brasil não precisaria recorrer a tais medidas, mas os Estados Unidos, percebendo o grande prejuízo que poderiam ter – já que são grandes exportadores para o Brasil, firmaram em 2010 um acordo com o país, envolvendo uma compensação financeira significativa.

Desde o início desse processo na OMC, o Brasil contou com o apoio de países africanos. No acordo de 2010, o Brasil propôs que parte dos recursos fosse destinada às Nações Unidas, mais especificamente à FAO, seu braço para agricultura, para que fossem aplicados em países produtores de algodão com baixa tecnologia e que necessitavam de transferência de conhecimento e investimentos para aprimorar a produção. Nesse contexto, os países africanos se destacaram como beneficiários potenciais.

A partir de 2010, começaram os repasses, e o Brasil iniciou uma primeira cooperação com países da África, criando o projeto Cotton Four, envolvendo Mali, Burkina Faso, Senegal e Costa do Marfim, que depois passou a incluir o Togo, tornando-se o Cotton Four + Togo.

Nesse momento, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) foi chamada como instituição de referência para realizar a transferência de tecnologia. Foram levadas tecnologias genéticas, sementes melhoradas do Brasil e métodos de controle biológico de pragas. O projeto se desenvolveu por quatro a cinco anos nesses países, inclusive deixando alguma infraestrutura instalada.

Depois, esse ciclo foi interrompido por questões políticas internas nos países africanos e pelo término do prazo previsto para execução. Durante um período, não houve novas cooperações. Mais tarde, os países voltaram a procurar o Brasil.

É importante destacar que a cooperação brasileira se dá sempre mediante solicitação: o Brasil não oferece projetos de forma unilateral. O país apresenta a demanda, e o Brasil se coloca como parceiro disposto a cooperar, especialmente no âmbito Sul-Sul. A partir daí, novas cooperações passaram a ocorrer, agora de forma individual, não mais com o grupo de cinco países, mas de modo específico para cada um.

A cooperação não se limita ao Mali: há também iniciativas na Costa do Marfim e no Senegal voltadas ao algodão, além de outras frentes em diversos países africanos. No caso do Mali, a cooperação foi retomada de forma efetiva em 2017, dentro desse histórico de interações prévias.

O Brasil é muito bem-visto e bem-recebido pelos países africanos, especialmente em projetos que envolvem metodologias participativas. Quando o Mali manifestou interesse em restabelecer a cooperação, foram enviados profissionais da agência brasileira para iniciar as tratativas do acordo.

Em seguida, técnicos foram designados para atuar dentro do escopo definido nas discussões iniciais. Foi realizado um amplo debate para identificar os principais gargalos da produção de algodão no Mali, que poderiam estar relacionados a diferentes fatores — como processamento da fibra, industrialização ou conservação do solo.

A demanda acabou se concentrando nas questões de conservação do solo e manutenção e recuperação do potencial produtivo das áreas agrícolas, reconhecidas como uma prioridade. Nesse ponto, a Universidade Federal de Lavras (UFLA) foi convidada a participar, por sua expertise na temática.

Na época, eu estava chegando à UFLA para um período de pós-doutorado e fui convidado a integrar a equipe, iniciando minha participação no projeto.

Isso ilustra bem a forma como o Brasil conduz suas cooperações: priorizando o diálogo, buscando ouvir as demandas do país parceiro e estruturando uma cooperação verdadeiramente horizontal, que responda às necessidades reais do solicitante.

IDeF: Focando na missão técnica que ocorreu em abril. Naquele mês, foi realizada uma missão técnica ao Mali voltada à capacitação de técnicos e extensionistas da CMDT. O senhor foi um dos responsáveis por essa formação. Gostaríamos de saber como foi essa experiência: como ela foi pensada, quais foram as abordagens utilizadas e os maiores desafios enfrentados ao longo do processo de capacitação.

MILSON: À medida que o projeto começou a ser implementado, lembrando que ele envolve duas áreas principais, conservação de solo e fertilidade, visando manter o potencial produtivo, foi-se observando que, para se alcançar resultados satisfatórios, outras frentes também precisariam ser incorporadas.

O projeto é desenvolvido em formato de projetos-piloto. O Brasil vai até o país, monta unidades demonstrativas de produção de algodão, trabalhamos basicamente com cinco unidades em diferentes regiões, e há uma participação direta dos agricultores nessas unidades. Assim, além da transferência de tecnologia, ocorre uma checagem simultânea sobre a absorção dessas práticas, já que os próprios agricultores participam do processo de implantação.

Quem, futuramente, fará a difusão dessas tecnologias pelo país é a CMDT, a companhia estatal. Nossa função é transferir conhecimento e capacitar seus técnicos para que possam multiplicar os resultados.

Durante as atividades, percebemos que, se os agricultores e suas famílias não estiverem minimamente saudáveis, isso impacta diretamente sua capacidade de trabalhar a terra. Diante disso, identificou-se a necessidade de formar uma equipe médica. Essa equipe passou a acompanhar as crianças das aldeias onde o projeto atuava, tratando questões como verminoses, doenças mais comuns e problemas de visão.

Algumas ações simples tiveram impactos significativos. Por exemplo, ginecologistas e obstetras realizaram encontros com as parteiras das aldeias, promovendo conversas e orientações sobre higiene e cuidados no parto. Foram distribuídos kits básicos de higienização, com gaze, sabão e outros itens simples, o que resultou em uma redução expressiva da mortalidade infantil pós-parto, chegando a zero em algumas comunidades.

Paralelamente, identificamos o saneamento como outro gargalo. As fossas criadas nas aldeias frequentemente transbordavam durante o período chuvoso, contaminando poços freáticos devido à proximidade entre ambos. Um grupo de pesquisadoras levou, então, uma tecnologia de banheiros secos, que foi testada e obteve boa aceitação entre as comunidades.

Enquanto isso, continuavam as missões relacionadas ao solo e à produção de algodão. Nesse período, começaram a surgir problemas com pragas nas lavouras. Percebemos que não adiantava trabalhar apenas a melhoria do sistema produtivo sob a ótica da nutrição das plantas e da conservação do solo se as culturas continuassem desprotegidas. Caso contrário, os agricultores não conseguiriam visualizar os resultados positivos das práticas adotadas, pois as plantas seriam comprometidas pelas pragas.

Foi nesse momento que propusemos incluir uma formação específica na área de entomologia, com o objetivo de desenvolver um manejo integrado de pragas que possibilitasse controle e redução de prejuízos, garantindo que as melhorias no solo e na nutrição se refletissem de fato em maior produtividade.

Esse foi o ponto de partida para incluir as missões de manejo de pragas dentro do projeto que, inicialmente, era focado apenas em solos.

Com base no diagnóstico dos anos anteriores, identificamos as principais pragas que afetavam as lavouras locais e convidamos técnicos de todo o país, representantes da CMDT, para participarem da capacitação.

Durante as formações, realizamos uma checagem das pragas que causavam maiores danos, verificamos quais tecnologias eram utilizadas e avaliamos sua eficiência. A partir daí, conduzimos um debate aberto, no qual os próprios técnicos chegavam às conclusões: se a tecnologia atual era eficaz, se precisava ser aperfeiçoada ou substituída.

Apresentamos, então, possibilidades de tecnologias já consolidadas no Brasil, com foco em práticas sustentáveis e replicáveis. O objetivo era reduzir os danos econômicos causados pelas pragas, sem recorrer a grandes volumes de pulverizações ou aumento no uso de defensivos.

Muitas vezes, percebemos que o problema não estava na falta de produtos, mas nas escolhas e nos momentos em que eram aplicados. Por isso, propusemos ajustes, substituições pontuais e melhor definição do momento de aplicação.

O principal planejamento foi fazê-los compreender a dinâmica das pragas dentro do ciclo da planta de algodão: quais surgem nas plantas jovens, quais nas fases intermediárias e quais nas estruturas reprodutivas, como flores e maçãs, que darão origem à pluma.

Com esse entendimento, eles ganham autonomia para realizar intervenções mais precisas, inclusive com produtos químicos quando necessário, mas de forma mais eficiente. Isso reduz custos e evita aplicações desnecessárias.

A ideia central é que compreendam a fenologia das pragas e a fenologia das plantas, discutindo as ferramentas que já possuem, para que tenham maior autonomia no manejo.

As conclusões de uma capacitação dessa natureza precisam sempre considerar se as recomendações são replicáveis dentro do contexto local. Não adianta propor soluções tecnicamente sofisticadas, mas inviáveis em termos de recursos ou aceitação social. Por isso, esse aspecto é constantemente verificado junto aos agricultores e aos técnicos locais, garantindo que as práticas recomendadas possam realmente ser aplicadas em campo.

IDeF: Houve algum desafio ou algo específico durante a capacitação que o senhor lembra como mais marcante?

MILSON: Existem alguns desafios que, na verdade, não são necessariamente dessa capacitação em si. O primeiro é que se trata de um país com questões internas muito marcantes. Nós trabalhamos o tempo todo com escolta militar, o Exército dorme na porta do hotel durante a noite e, pela manhã, seguimos para o campo. Precisamos ter um planejamento muito cuidadoso, porque, às cinco horas da tarde, já devemos estar voltando. Não podemos estar na estrada depois do pôr do sol, por questões de segurança. São fatores que nos cercam e tornam o trabalho um pouco mais complexo.

Um segundo ponto é a barreira linguística. A língua mais falada é o francês, mas o país adotou recentemente uma língua local, o Bambará, como idioma oficial. Nós contamos com intérpretes da Agência Brasileira de Cooperação, porque, embora alguns colegas falem francês, não é recomendado que o façam diretamente. Em uma cooperação internacional, uma palavra mal colocada, num contexto cultural diferente, pode gerar ruídos de comunicação. Por isso, a interpretação é feita exclusivamente pelos profissionais da Agência, para garantir clareza e evitar mal-entendidos.

A dinâmica acaba ficando interessante, mas também trabalhosa. Nós falamos em português, o intérprete traduz para o francês, e, nas vilas e aldeias, muitas pessoas não falam francês, pois nunca frequentaram a escola. Então, um intérprete local traduz do francês para o Bambará. Nesse processo, uma fala de dez minutos facilmente se transforma em trinta. Essa é uma das dificuldades que enfrentamos. Por isso, optamos por fazer muitas demonstrações práticas, o que reduz o tempo de fala e facilita o entendimento. Dessa forma, conseguimos avançar mais em menos tempo e transmitir as ideias de maneira mais clara.

Eles são muito receptivos e demonstram grande interesse em aprender, o que torna o trabalho bastante prazeroso. Acham curioso quando nos veem colocando equipamentos de proteção individual, vestindo roupas de campo ou carregando pulverizadores para as demonstrações. Costumam comentar: “Mas vocês mesmos vão usar isso?”. Também se divertem quando pegamos alguma das ferramentas deles para mostrar algo. Esses momentos de campo, quando trabalhamos lado a lado, são muito ricos. É nesse contato direto que percebemos a cooperação acontecendo de verdade.

Esses foram, sem dúvida, os momentos mais marcantes dessa missão. Tivemos duas idas ao campo, das 7h30 da manhã até as 13h da tarde, realizando atividades como amostragem de pragas, demonstrações de pulverização, contagem e identificação das pragas, além da avaliação sobre quando pulverizar ou não. São experiências muito produtivas, em que eles demonstram enorme interesse. É aí que sentimos, de fato, que a cooperação está acontecendo e alcançando seus objetivos.

IDeF: Tanto no Brasil quanto no Mali, a dependência de monoculturas como algodão e milho impõe desafios significativos à sustentabilidade agrícola. Quais obstáculos têm sido enfrentados na transição para sistemas mais diversificados? Como essas dificuldades são semelhantes ou diferentes nos dois países?

MILSON: Bem, eu vou começar pelo Mali, depois passo para o Brasil, talvez até volte ao Mali em alguns pontos. O Mali tem uma organização política que inclui as formas de uso da terra. Lá não existe propriedade privada, o Estado é quem concede o direito de uso das terras aos agricultores. Para cada vila ou aldeia, o governo destina uma área a ser explorada, de maneira bastante flexível, sem divisas ou cercamentos rígidos, como temos aqui. Os limites entre áreas e aldeias são, na prática, bem fluidos.

Dentro das aldeias, existe uma organização social de base ancestral, independente do governo central. Cada comunidade é chefiada por um ancião, o “chefe da aldeia”, que atua com o apoio de auxiliares. Em conjunto com os núcleos familiares que, por se tratar de um país muçulmano, muitas vezes reúnem duas ou três famílias, definem a área de cultivo de cada grupo, de acordo com sua força de trabalho disponível.

O Estado, entretanto, impõe uma regra: 70% da área deve ser destinada ao cultivo do algodão, e apenas 30% podem ser utilizados para a produção de grãos e alimentos para consumo familiar. Essa é a legalidade do processo. O problema é que, diante do empobrecimento do solo, um dos motivos centrais do nosso projeto, que busca justamente restaurar e manter o potencial produtivo, somado às condições climáticas adversas, esses 30% muitas vezes não são suficientes para garantir alimento para todo o ano.

O clima no Mali é extremamente hostil: há oito meses de seca e apenas quatro meses de chuvas. Durante esse curto período chuvoso, a dieta se torna um pouco mais diversificada, com o consumo de milho, milheto, amendoim e, ocasionalmente, carne. Contudo, é comum o consumo de folhas, como as do baobá, que são maceradas e fervidas para formar um caldo rico em proteína, utilizado sobre o angu de milho branco. À medida que a seca avança, essas folhas desaparecem, restando apenas o milheto, o milho e, quando possível, o amendoim, sendo este último o mais escasso. Se uma dessas culturas falha, não há alternativas disponíveis.

Isso gera conflitos locais, pois muitos agricultores acabam destinando mais de 30% de suas terras para o plantio de alimentos, contrariando a determinação do governo, que busca priorizar o algodão. O Mali tem no monocultivo do algodão a base de sua economia, algo comparável, em termos estruturais, à importância da Petrobrás no Brasil. Toda a produção é comprada pela Companhia Malinesa para o Desenvolvimento Têxtil (CMDT), uma estatal que realiza o processamento mínimo e exporta a fibra, principal fonte de receita nacional.

O grande desafio, portanto, é convencer o Estado de que não basta aprimorar a produção de algodão, foco do projeto, mas também fortalecer a produção de alimentos. Uma das estratégias adotadas para mitigar esse conflito foi a introdução de sistemas consorciados, ou seja, o plantio conjunto de culturas como algodão e amendoim, algodão e milho, ou algodão e caupi (feijão-caupi), uma variedade já conhecida por algumas comunidades locais.

Essa abordagem era nova para eles. Inicialmente, houve receio de que o consórcio prejudicasse a produtividade do algodão, mas, com o tempo, perceberam que conseguiam bons resultados tanto na produção de alimentos quanto na de fibra. O monocultivo, no caso do Mali, representa um enorme risco porque o país depende economicamente de uma cultura altamente vulnerável ao clima. Em anos de seca ou ataque de pragas, a produção cai drasticamente, afetando toda a economia. Em 2022, por exemplo, uma praga nova causou uma quebra significativa de safra.

Assim como no Brasil, o monocultivo traz os mesmos desafios de sustentabilidade. Contudo, no caso malinês, há uma dependência econômica que torna difícil romper com esse modelo. Nosso esforço tem sido mostrar que é possível equilibrar produção e segurança alimentar por meio da diversidade agrícola. O consórcio de culturas como milho, milheto, amendoim, caupi e algodão aumenta a diversidade biológica do sistema, reduzindo a probabilidade de pragas devastarem as lavouras. Isso cria sistemas agroecológicos mais equilibrados, porque a incidência de pragas é, em essência, um reflexo do desequilíbrio ambiental.

No Brasil, enfrentamos uma situação semelhante. Somos grandes exportadores de soja, algodão, milho e açúcar, produtos que, no entanto, não estão diretamente ligados à alimentação da população. Ser o maior produtor mundial de soja ou um dos principais exportadores de carne não significa acesso alimentar garantido para os brasileiros, pois essas commodities seguem a lógica do mercado internacional, não da segurança alimentar.

Essas monoculturas operam essencialmente como empresas, sem compromisso social. Em contextos de mudanças climáticas ou crises globais, o mercado dita as prioridades: exportar o que gera mais lucro. Um exemplo recente foi o do café no Espírito Santo: quando houve quebra de safra em outros países, o preço internacional disparou, e o Brasil exportou quase toda a produção, o que fez o preço interno subir drasticamente.

Assim, o problema das monoculturas não está apenas na escolha da cultura em si, mas na lógica de mercado e no modelo de produção. Há produtores que manejam soja, milho e algodão de forma sustentável, a questão é a escala e o propósito. No Brasil, diversificar é um desafio porque significa ir contra uma estrutura econômica consolidada e altamente rentável. É muito difícil convencer um agricultor que ganha bem com a soja a fazer rotação de culturas, plantando feijão ou girassol, por exemplo, apenas por razões ambientais. A pressão do mercado é sempre maior.

Em resumo, tanto no Mali quanto no Brasil, a monocultura atua como uma “indústria a céu aberto”, movida pelo lucro e pela exportação, mesmo que isso represente custos ambientais e sociais significativos. A sustentabilidade agrícola, portanto, exige não só tecnologia, mas também mudanças institucionais e culturais que enfrentem essa lógica econômica dominante.

IDeF: Poderia nos contar um pouco mais sobre como essas ações funcionam e como elas dialogam em conjunto, isso em relação a temas como conservação da água, saneamento, habitação e outras questões que possam ter surgido aí no meio do percurso.

MILSON: Claro. No momento em que foi escolhido o agente brasileiro capaz de atender à demanda e ao escopo do projeto, que envolve a conservação e o potencial produtivo das áreas de cultivo de algodão no Mali, definiu-se que seria a Universidade Federal de Lavras. As demais frentes do projeto também ficaram sob responsabilidade de profissionais dessa mesma universidade, o que acabou sendo um facilitador importante para que as ações dialogassem melhor entre si.

O projeto conta com um coordenador dentro da universidade que tem justamente o papel de promover essa integração entre as equipes, de saneamento, saúde, conservação de solo e água, fertilidade do solo e entomologia. Existe esse cuidado de manter uma interlocução constante. Como o objetivo geral do projeto é alcançar um avanço integral, não apenas na produção de algodão, mas também na segurança alimentar, na saúde e no bem-estar das comunidades, cada equipe traça sua própria metodologia e realiza diagnósticos específicos para contribuir com esse propósito de forma articulada.

Falando um pouco das diferentes frentes: a equipe de saneamento, por exemplo, dividiu suas ações em duas partes principais. A primeira foi a construção de banheiros secos, substituindo as antigas latrinas e fossas negras, o que trouxe uma melhora significativa nas condições de higiene das moradias. A segunda foi o trabalho com a drenagem das vilas. A região é muito seca, mas quando chove, as chuvas são intensas e o solo tem baixa absorção, formando poças em volta das casas. Então, foi desenvolvido um sistema simples de drenagem para minimizar esse problema.

Também houve uma frente voltada à melhoria das habitações. Uma colega da equipe, com grande experiência em construções de terra, trabalhou diretamente com as comunidades. Eles já utilizavam casas de adobe, mas se queixavam de que as chuvas exigiam manutenção anual. Ela ensinou técnicas construtivas aprimoradas para aumentar a durabilidade dessas moradias e melhorar as condições de higiene, reduzindo trincas e buracos, que são locais propícios ao acúmulo de sujeira e à presença de insetos.

Essa frente de saneamento, portanto, envolveu várias dimensões: os banheiros secos, a drenagem e a melhoria dos poços. Fizemos o revestimento dos poços para aprimorar a qualidade da água. Antes, eles retiravam a água jogando um balde amarrado a uma corda, o que fazia o balde bater nas paredes do poço e soltar barro, deixando a água barrenta. Com o revestimento, protegemos as paredes, e também instalamos bombas manuais de recalque. Isso facilitou muito o trabalho das mulheres, que antes gastavam muito tempo e esforço para buscar água, além de melhorar a higiene geral.

Outras frentes também se desenvolveram em paralelo. A equipe de saúde, por exemplo, trabalhou fortemente com as parteiras locais, no acompanhamento de gestantes e no controle de verminoses e desnutrição infantil.

Já na conservação de solo e água, o foco foi na redução da erosão e no aproveitamento dos pontos de contenção de água para a produção de alimentos. Criamos barreiras dentro das áreas de cultivo, às vezes de terra, às vezes com cordões vegetais, que impedem o escoamento superficial da água. Escolhemos, junto com os agricultores, plantas úteis para a alimentação animal, de modo que, durante a seca, eles possam alimentar cabras e galinhas. Essa estratégia reduz a erosão, melhora a infiltração de água (o que ajuda a abastecer os lençóis freáticos e, consequentemente, os poços), e ainda contribui para a segurança alimentar e nutricional da comunidade.

Na área de fertilidade do solo, foram desenvolvidas tecnologias voltadas ao reposicionamento de adubos e manejo de nutrientes, com foco em melhorar o crescimento das plantas. Já a equipe de entomologia trabalha no monitoramento das pragas, realizando amostragens e definindo os melhores momentos para intervenção, sempre buscando o menor custo e o menor impacto ambiental possível.

IDeF: Quais têm sido os principais aprendizados dessa troca — não apenas em relação à cooperação técnica dentro do projeto, mas também no contato com as pessoas? Pensando nessa experiência conjunta, como pesquisador, como professor, e também como alguém de fora que vai in loco difundir uma política pública que tem impacto direto na vida daquela comunidade?

MILSON: O grande desafio e, ao mesmo tempo, o que considero mais gratificante, é conseguir fazer o nosso conhecimento dialogar com a realidade local. Não adianta estar muito bem preparado tecnicamente, dominar as metodologias e as tecnologias mais modernas, se isso não se conecta com o contexto em que se está atuando.

Eu, por exemplo, até o início de 2024 morava no Mato Grosso, um estado onde o agronegócio é extremamente desenvolvido: as máquinas são caríssimas, a tecnologia empregada é das mais avançadas do mundo. Mas toda essa sofisticação tecnológica simplesmente não faz sentido quando você chega ao Mali.

Lá, o desafio é outro: melhorar a vida das pessoas, aumentar a produção agrícola e preservar o meio ambiente em um cenário de recursos financeiros muito limitados. Imagine tentar transformar uma realidade sem ter dinheiro para investir. Seria simples chegar e dizer: “Apliquem uma adubação pesada, passem o trator para deixar o solo mais fofo, comprem esses defensivos e vocês terão uma colheita excelente de algodão.” É verdade, teriam…mas qual produtor no Mali teria condições de fazer isso?

Então, o nosso desafio foi justamente aprender a transformar essa realidade com o mínimo de recursos possíveis. E isso é um aprendizado de vida maravilhoso. A cada missão, a cada desafio, fomos exercitando a capacidade de adaptar o conhecimento técnico à realidade local, fazer com que ele fosse realmente útil.

No Brasil, a realidade é completamente diferente: há abundância de insumos, linhas de crédito acessíveis e um ambiente de produção que favorece recomendações técnicas padronizadas. Já no Mali, não existe esse suporte financeiro. Você precisa pensar em estratégias que melhorem o cultivo e o ambiente, mas sem aumentar os custos para o produtor.

Por outro lado, há um limite natural, os nutrientes do solo não se regeneram espontaneamente. Uma área que produz algodão por décadas tende a se empobrecer se não houver reposição de cálcio, magnésio, fósforo, nitrogênio, todos levados embora junto com a fibra exportada.

Então, a grande questão é: como fazer uma agricultura sustentável sem poder repor os nutrientes exportados pela colheita? A resposta que encontramos foi trabalhar com o conceito de produtividade de equilíbrio — ou seja, não buscar grandes produções, mas uma produção constante, sustentável e de baixo custo, que mantenha o potencial produtivo do solo a longo prazo.

Quando, no futuro, houver maior capacidade de investimento, será possível pensar em aumentar a produtividade. Mas, no momento, o foco é garantir estabilidade e equilíbrio. O grande aprendizado, sem dúvida, é esse: aprender a trabalhar com poucos recursos, mas com criatividade, adaptação e respeito à realidade local.

IDeF: Por fim, gostaríamos de saber como o senhor avalia o papel do Brasil em iniciativas como essa, que unem cooperação internacional, inovação tecnológica e práticas agrícolas sustentáveis. Que lições nós podemos tirar para as nossas próprias regiões?

MILSON: Bem, uma primeira lição se conecta muito com o que eu comentei anteriormente: a importância de racionalizar recursos. É claro que não buscamos ficar no mesmo patamar de produção do Mali, nossa meta é atingir níveis de produtividade muito mais elevados. Isso naturalmente implica maior uso de insumos, fertilizantes e defensivos, porque a quantidade de nutrientes que exportamos por meio das colheitas também é muito maior. Então, precisamos fazer uma reposição compatível com aquilo que retiramos do solo.

No entanto, há muito desperdício. Como muitos insumos e commodities ainda remuneram bem o agricultor brasileiro, às vezes ele pensa: “Ah, vou exagerar um pouco, colocar um pouco a mais de tudo. Pode ficar mais caro, mas o lucro compensa.” E esse tipo de raciocínio acaba gerando uma ineficiência produtiva. Ele deixa de investir em assistência técnica, porque economicamente o sistema ainda se sustenta, mas isso tem um custo ambiental e social elevado.

Quando o produtor aplica doses maiores do que o necessário, ele não pensa que está colocando no campo produtos vindos de indústrias altamente poluentes, como as de fertilizantes e defensivos. O excesso de insumos significa mais emissões, contaminação do solo e das águas, e um impacto ambiental que vai muito além da propriedade. Então, o que o Brasil pode aprender com o Mali é justamente essa capacidade de racionalizar recursos e aumentar a eficiência, não no sentido de produzir menos, mas de ser mais criterioso no uso dos insumos e dos recursos naturais disponíveis.

Precisamos lembrar que as nossas exportações gigantescas, de soja, suco de laranja, açúcar, algodão, carne bovina e tantas outras, também representam, de certa forma, uma forma de mineração do solo. Cada saca de produto exportada leva embora nutrientes fundamentais, como fósforo, nitrogênio, potássio, magnésio, cálcio e enxofre. Se não houver reposição adequada, perdemos sustentabilidade e comprometemos a produção daqui a 50 ou 100 anos.

Veja o caso do Egito, que produz no mesmo solo há cinco ou seis mil anos. O Brasil, com solos cultivados há cerca de 400 anos, ainda está no início da sua história agrícola e precisa cuidar para que esses solos continuem produtivos. O solo é um recurso único: não há outro espaço disponível para substituí-lo. Por isso, esse aprendizado sobre racionalização e eficiência pode trazer ganhos imensos, econômicos, ambientais e sociais para o país.

O projeto continua em andamento, justamente pelos bons resultados alcançados. Há sempre um movimento de renovação. E o Brasil, por meio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), tem uma expertise enorme e reconhecida internacionalmente. Quando a gente começa a conhecer mais de perto o trabalho da ABC, percebe o alcance e a aceitação que ela tem no exterior, é algo que realmente dá orgulho da diplomacia brasileira, porque conseguimos entrar em países com culturas muito diversas.

Na área da agricultura, o Brasil tem um know-how consolidado, mas a cooperação se estende a várias outras frentes, tanto na África quanto na Ásia, sempre dentro da lógica da cooperação Sul-Sul. Em algumas missões, cruzamos até com equipes de outros países em aeroportos, em projetos trilaterais, por exemplo, com o Japão financiando a iniciativa e o Brasil executando a cooperação em outro país, por ter mais afinidade cultural e técnica com aquele contexto.

Tudo isso é muito engrandecedor. O Brasil tem essa capacidade rara de cooperar com países que, muitas vezes, são muito pobres e não trarão nenhum retorno econômico direto. E ainda assim, seguimos cooperando, não por interesse comercial, mas por solidariedade, por convicção diplomática. Acho que esse é um traço nobre da nossa política externa, somos um dos países mais neutros em conflitos e, ao mesmo tempo, mais ativos na construção de parcerias.

Para além da parte técnica, essa dimensão diplomática é muito inspiradora. O papel da ABC, nesse sentido, nos motiva a continuar fazendo o melhor na nossa parte técnica e a manter vivo o protagonismo do Brasil na cooperação Sul-Sul.

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