O internacional, os ODS e os municípios brasileiros

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O internacional e as cidades

As cidades e os governos locais foram, por vários momentos na história, o referencial de autoridade e identidade das populações, ao invés do Estado Nacional. Desde o modelo greco-romano da Antiguidade que as cidades, ou comunidades, mesmo as mais próximas, organizavam-se à maneira de verdadeiros estados, diferenciando-se em termos de governo, leis, burocracia, tributos, exército, língua. Havia inúmeros poderes locais autônomos com língua própria. Se existia um amor à pátria, ele era de caráter particularista ou municipalista (1).

Esse modelo político era muito mais fragmentado do que descentralizado, marcado por certo grau de personalismo, em que os atores políticos eram os sujeitos das relações, de tal maneira que as relações internacionais consistiam em relações entre governantes. A política era o próprio agente político.

Em determinado momento da história houve então a nacionalização da territorialidade e a fabricação dos governos nacionais centralizados. No território construía-se a identidade nacional com o intuito de superar as identificações locais. E foi estruturada uma administração formal e institucionalizada: com leis, burocracia, exército, tributos, comércio e diplomacia unificadas. O personalismo foi cedendo lugar ao institucionalismo. Trata-se do momento de transferência de lealdade do local para o nacional.

O Estado Moderno forte e centralizador gradualmente foi sendo remodelado pelos impactos do progresso tecnológico, que gerou novas relações sociais e, com isso, novas necessidades políticas e econômicas. As inovações nas comunicações e nos transportes foram mais intensas a partir de meados do século XX e, como resultado, observa-se a intensificação das interações em escala mundial, ligando as sociedades de forma mais dinâmica e permitindo que o local e o global se impactem mutuamente com mais intensidade.

As interconexões globais ocorrem das mais diversas formas, tornando temáticas até então restritas ao âmbito doméstico em assuntos de caráter internacional. É o que se observa na questão do clima, das migrações, da poluição, do controle de doenças, do desenvolvimento sustentável, da segurança alimentar – temas que muitas vezes necessitam ser tratados no nível internacional para atingir resultados mais efetivos.

No caso da governança local, há ainda a questão da interdependência de interesses entre diversas cidades ao redor do mundo, que dividem os mesmos problemas e limitações. A presença desses interesses comuns, a facilidade de estabelecer contatos, bem como a dificuldade dos governos nacionais em atender integralmente as demandas municipais, é que justificam o retorno da descentralização, particularmente a descentralização da prática de fazer relações internacionais. O internacional ganha espaço no nível doméstico, especialmente no nível local: as cidades buscam soluções e parcerias no ambiente internacional, de forma autônoma e auto interessada.

As experiências internacionais das cidades têm sido distintas, muito em razão dos seus níveis de desenvolvimento distintos, das suas particularidades locais e das suas capacidades de agir externamente, relacionadas às próprias contingências humanas e materiais. Em todo caso, as motivações são muito parecidas, como as possibilidades de captar recursos, estimular o comércio, trazer investimentos, promover o turismo, firmar parcerias e pactuar projetos em diversas áreas (saúde, educação, infraestrutura, mobilidade urbana, segurança pública, arranjos produtivos, desenvolvimento econômico).

Há ainda a facilidade das parcerias internacionais estabelecidas por cidades serem mais flexíveis do que os grandes projetos internacionais firmados pelos governos nacionais. Também são projetos direcionados para as realidades locais, em oposição aos projetos dos governos centrais, que muitas vezes são muito amplos e não conseguem atender as necessidades e interesses locais

Os ODS e os municípios brasileiros

É nesse contexto de descentralização dos assuntos internacionais que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se inserem. A denominada Agenda 2030 foi pactuada em 2015, dentro das Nações Unidas, e estabelece 17 objetivos e 169 metas que deverão ser implementadas por todos os países até 2030. O ponto focal da agenda são as cidades. Porque é nas cidades que os objetivos são implementados. Porque é nas cidades que as populações vivem. Porque é nas cidades que os problemas existem.

No caso brasileiro, o que se observa é um esforço bastante concreto de conscientização em relação à implementação dos ODS pelos governos municipais. São várias ações identificadas, especialmente das entidades de representação dos municípios, assim como o esforço pessoal de algumas autoridades locais.

O Governo Federal brasileiro criou a Comissão Nacional para os ODS (CNODS) em outubro de 2016, com representantes da sociedade civil e governos, que possui como principal objetivo internalizar e difundir a Agenda no Brasil. Como resultados até agora, verifica-se o esforço de estruturação interna da Comissão, iniciativas de comunicação online para disseminação da Agenda

(entre elas a divulgação da 1ª Edição do Prêmio ODS Brasil), mapeamento das políticas públicas federais alinhadas com os ODS, produção e disponibilização de indicadores nacionais pelo IBGE (por meio da Plataforma ODS Brasil). O eixo que pouco avançou dentro da Comissão foi exatamente o de territorialização, isto é, a implementação dos ODS nos estados e municípios brasileiros. A criação de um Prêmio ODS ocorreu com o intuito de atender esse eixo e, de acordo com alguns relatos e até mesmo as entrevistas com Picuí/PB e Petrolândia/PE realizadas pelo IDeF (2), mostram que a premiação possui um valor simbólico significativo para as municipalidades. Há ainda a mais recente parceria estabelecida entre o Governo Federal, por meio da Petrobrás, e o sistema das Nações Unidas para promover os ODS nos 110 municípios que a companhia está presente.

Em relação à territorialização da Agenda, os esforços das entidades de representação também aparentam ser efetivos, principalmente em razão da sua maior facilidade em contatar e mobilizar os municípios. A Confederação Nacional de Municípios, em parceria com o PNUD, lançou o “Guia para Integração dos ODS nos municípios brasileiros na gestão 2017-2020”, em que constam um passo-a-passo de como incorporar os ODS na agenda municipal e estratégias específicas para implementação de cada objetivo.

A Associação Brasileira de Municípios (ABM) também lançou o projeto “Parceria pelo Desenvolvimento Sustentável”, que organiza oficinas regionais para esclarecer sobre a Agenda 2030. As Federações Municipais estaduais e as Associações Regionais de Municípios também têm promovido diversos eventos, com destaque para o Estado do Paraná, que busca promover a adesão de todos os seus municípios.

O Sesi no Paraná é destaque na mobilização, divulgação e acompanhamento das agendas mundiais de desenvolvimento. Em 2018, criou o Portal ODS que reúne indicadores de todos os estados e municípios brasileiros; o Prêmio Sesi ODS, que conta com a participação de municípios de todas as regiões do Estado do Paraná; o Banco de Boas Práticas ODS, que traz as boas práticas dos municípios do estado.

Outro caso diferenciado é do Estado de São Paulo. Em 2018, o Tribunal de Contas do Estado anunciou que vai monitorar a adoção dos ODS nos 644 municípios paulistas. A ideia é que os fiscais do tribunal verifiquem não somente a empregabilidade do recurso público, mas o resultado das políticas e se os ODS são atendidos por essas políticas. Também foi criado o Observatório do Futuro, uma parceria entre o TCE/SP e o PNUD.

E claro que existem ainda as próprias iniciativas de governos estaduais, como é o caso do Governo do Estado do Maranhão, que busca incentivar a implementação dos ODS nas cidades maranhenses, produzindo eventos para qualificar gestores, os quais têm acesso a metodologias para desenvolver políticas que atendam as demandas da população e melhorem os índices socioeconômicos municipais. Portanto, a territorialização da Agenda progride no Brasil, apesar da grande dependência dos municípios brasileiros dos recursos do Governo Federal para desenvolver ações e políticas públicas alinhadas com os ODS. A conscientização nos municípios sobre as vantagens de implementar os ODS consiste em ação fundamental para o sucesso dessa territorialização, já que, como toda a agenda que envolve o internacional, ela pode não parecer muito vantajosa e atrativa à primeira vista.

  1. Citação de Modesto Florenzano em “Sobre as Origens e o Desenvolvimento do Estado Moderno no Ocidente”, Lua 2 Nova, São Paulo, 71: 11-39, 2007.
  2. As entrevistas podem ser acessadas na aba Nordeste do portal IDeF.

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