Saúde em fronteira e cooperação internacional na área de saúde, por Túlio Franco (UFF/Rede Unida)

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Túlio Franco

Túlio Franco é Psicólogo, Mestre e Doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp, Pós-doutor em ciências da saúde pela Universidade de Bolonha-Itália. Professor Associado no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense. Orientador de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva – PPGBIOS. Pesquisador Convidado do Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Internacional e Intercultural da Universidade de Bolonha-Itália – CSI/UNIBO. Membro do Laboratório Ítalo-Brasileiro de Formação, Pesquisa e Práticas em Saúde Coletiva.

IDeF – A Rede Unida existe há mais de 30 anos com o intuito de mobilizar a comunidade científica e os profissionais da área da saúde em prol do incremento do sistema de saúde nacional. Você poderia nos contar sobre a origem da Rede Unida e as suas principais conquistas e entraves ao longo desses anos?

Túlio – Em 1985 durante um encontro nacional na histórica cidade de Ouro Preto, um grupo de docentes, pesquisadores e profissionais da saúde, mobilizados para a qualificação da educação profissional em saúde, criaram a Rede Unida. Incentivada pela Fundação W. K. Kellogg, a Rede buscava transformar o modelo de atenção a partir de um conceito ampliado de saúde, com ênfase na promoção. A mobilização dos atores da Saúde para criar a Rede acontece junto a várias outras entidades do Movimento Brasileiro de Reforma Sanitária (anos 1970), tais como o CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) e a ABRASCO (Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva). Em 1986 a Rede Unida participou da histórica 8ª. Conferência Nacional de Saúde por meio de seus membros, envolvidos com a reforma sanitária do País. No mesmo ano, a Rede organizou o seu primeiro encontro nacional, em Ouro Preto, onde foram debatidas a formação de recursos humanos em saúde, a atenção materno-infantil, e o modelo assistencial.

Ao longo dos anos a Rede Unida vem investindo na construção do Sistema Único de Saúde, contribuindo de forma decisiva para projetos e programas de educação em saúde, em larga escala, envolvendo importantes inovações nesta área. É uma entidade que trabalha com os princípios da multiplicidade, reconhecendo que o espectro da saúde é formado de movimentos, pessoas, grupos, de diferentes origens, com diversidade de ideias sobre o SUS, mas que têm em comum o objeto de construí-lo como sistema público de direito universal.

Vem investindo na construção do Sistema Único de Saúde, contribuindo de forma decisiva para projetos e programas de educação em saúde, em larga escala

Hoje a Rede Unida é uma referência sólida para a academia, redes de serviços de saúde e movimentos sociais das mais diferentes vertentes, incluindo comunidades indígenas, parteiras, quilombolas, ribeirinhos, comunidade LGBTTI, entre uma diversidade grande de possibilidades de manifestação em torno do tema da saúde.

A Editora da Rede Unida é um dispositivo criado nos últimos anos de divulgação de literatura da área, promoção de novos autores no tema da saúde, e proporciona o debate em áreas de conhecimento emergentes no campo da saúde. Tem sido de fundamental importância para o crescimento da área e da própria Rede Unida.

​IDeF – O nosso Sistema Nacional de Saúde (SUS) permite o acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde que vão desde o atendimento básico, exames médicos, distribuição de medicamentos, vacinação até a complexidade dos transplantes de órgãos. É possível ter um sistema de saúde gratuito tão completo e de qualidade? Como você avalia o nosso sistema de saúde atualmente?

Túlio – Nós podemos afirmar com toda certeza que o Brasil tem uma das melhores e mais completas legislações de sistema de saúde com o direito universal de acesso aos serviços. Então isso é uma base importante de constituição do SUS. É claro que o desenvolvimento do SUS necessita, para fazer com que ele continue e amplie o acesso a esses serviços e aos produtos do sistema de saúde para cuidar das pessoas, de uma reestruturação no modo de produzir o cuidado. Isso porque no século passado, no século XX, se desenvolveu o modo de produção do cuidado que é excessivamente centrado em procedimentos. Então isso precisa ser revertido de modo que essa produção do cuidado instrumentalizada, tenha seus excessos eliminados, investindo mais no processo de trabalho centrado nas relações entre as pessoas, especialmente trabalhadores e usuários. E numa abordagem ao cuidado da pessoa considerando não só o seu problema específico e clínico, mas considerando todo o seu modo de vida, a origem a da pessoa, sua história, as relações de família, os estressores de trabalho, todos os aspectos que dizem respeito ao modo como ela desenvolve a sua vida. E para isso é necessária uma abordagem acolhedora. Esse é o principal aspecto capaz aumentar a eficácia e resolutividade do sistema de saúde. Então nós consideramos que é possível sim se ter acesso universal, desde que ele deixe de ser excessivamente consumidor de procedimentos e passe a ser um serviço que reconheça que o aspecto relacional é resolutivo para os processos terapêuticos.

IDeF – A Rede Unida promoveu recentemente o Seminário de Atenção Básica em Saúde no Amazonas (abril/2019) e entre as questões abordadas estava a saúde indígena e do imigrante. Com a crise na Venezuela, diversos estados brasileiros da fronteira têm recebido esses imigrantes, o que impacta diretamente os serviços locais de saúde. Quais são os desafios relacionados à saúde do imigrante e que soluções têm sido buscadas para esse problema pelos municípios brasileiros da fronteira?

Túlio – A Rede Unida pensa a saúde do imigrante a partir de premissa inscrita na convenção de Costa Rica, que é uma convenção patrocinada pela Organização dos Estados Americanos – OEA, da qual o Brasil é signatário e reconhece que todo imigrante tem no Brasil os mesmos direitos do nacional. Então, nós entendemos que todo imigrante que busca refúgio no Brasil tem direito ao acesso ao sistema de saúde, sistema de educação e todo o sistema de proteção social que um brasileiro tem.

Convenção de Costa Rica: patrocinada pela Organização dos Estados Americanos – OEA, da qual o Brasil é signatário e reconhece que todo imigrante tem no Brasil os mesmos direitos do nacional

SAÚDE NA FRONTEIRA

Nós fizemos um encontro em Boa Vista/Roraima para verificar as condições dos imigrantes e contribuir com o debate relacionado à saúde do imigrante. Isso aconteceu em agosto de 2018 e teve uma presença muito importante da Universidade Federal de Roraima, pessoas do serviço de saúde municipal e estadual, movimentos socais e pessoas que estavam diretamente envolvidas no trabalho com os imigrantes nos abrigos mantidos pela Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR/ONU.

Entendemos que o primeiro movimento que tem que ser feito na direção do apoio aos imigrantes é um movimento humanitário de acolher essas pessoas, dar a elas assistência à saúde – porque geralmente eles chegam muito fragilizados e adoecidos –, dar assistência às crianças e inseri-las no sistema de educação brasileiro, providenciar abrigos, alimentos e condições de higienes adequados. O segundo momento é o de procurar integrá-los na sociedade brasileira, procurando trabalho e renda, legalização de sua documentação de forma a que eles possam restabelecer as suas vidas em território brasileiro. Essas questões são fundamentais e todas elas dizem respeito à saúde do imigrante. Essa abordagem deve ter uma didática específica, pois é necessário reconhecer que se trata de uma população com diversidade cultural e linguística, e é necessário acolher esta diferença.

IDeF – Inúmeros prefeitos têm como desafio a gestão municipal dos serviços de saúde, principalmente em razão da falta de recursos próprios e a dependência dos recursos repassados pela União. Como a cooperação internacional poderia ajudar a gestão da saúde municipal? Que ações são possíveis e como os municípios podem acessar essa cooperação?

Túlio – A cooperação internacional é importante como um processo de troca. Ou seja, reconhecemos que temos a aprender com a experiencia de outros países e povos na organização dos seus serviços de saúde, mas também é importante que eles reconheçam que a experiência do SUS é uma das mais ricas do mundo, e tem muito a ensinar. Então é uma relação simétrica na qual haverá o processo de aprendizagem mútuo das experiências entre os países, que cooperam entre si na constituição dos seus serviços de saúde. Os municípios podem acessar os processos de cooperação estrangeira na medida em que esses processos se tornem públicos, e interessem aos municípios em projetos que beneficiem os serviços de saúde e a população usuária. No meu entendimento, a universidade tem o papel de contribuir com a cooperação e difusão das suas respectivas experiências, oferecendo assim um benefício aos municípios

IDeF – Sobre a participação estrangeira na promoção da saúde no Brasil de forma geral, existe alguma política ou projeto que você considere relevante? Como essa política impactou a saúde pública no Brasil?

Túlio – Durante a história do sistema de saúde brasileiro várias experiências estrangeiras contribuíram para a formação das nossas políticas de saúde no país. Por exemplo, a reforma sanitária brasileira dos anos 70, que culminou na formação do SUS, teve contribuições importantes de diversos países, entre eles Canadá, Itália e a Organização Pan-Americana de Saúde, então considero fundamental este reconhecimento.

Cuidados Intermediários em vários países da Europa, como na Inglaterra, na Noruega, na Espanha e, principalmente, na Itália, são algumas referências de políticas relevantes de outros países que impactaram a saúde pública no Brasil.

Na reforma do nosso sistema de saúde mental, o movimento antimanicomial teve uma referência muito importante no que foi a reforma na Itália por exemplo. E nesse exato momento estamos desenvolvendo uma discussão sobre Cuidados Intermediários que tem referência em vários países da Europa, como na Inglaterra, na Noruega, na Espanha e, principalmente, na Itália. Então essas são algumas referências de políticas relevantes de outros países que impactaram a saúde pública no Brasil.

IDeF – Especificamente sobre a cooperação internacional da UFF com a Itália no âmbito da saúde pública, você poderia nos contar um pouco mais sobre a trajetória dessa parceria até o lançamento do Projeto RERSUS/Brasil? Que resultados têm sido alcançados até o momento com essa parceria?

Túlio – A parceria com a Itália está sendo desenvolvida pela Rede Unida, que participa do Laboratório Ítalo-brasileiro de Formação, Pesquisa e Práticas em Saúde Coletiva. Esse Laboratório é o lugar de encontro entre italianos e brasileiros, envolvendo uma rede de universidade e serviços de saúde da Itália e do Brasil, que querem colaborar entre si. No contexto do funcionamento do Laboratório nós realizamos dois seminários por ano, um no Brasil e um na Itália, e existe uma importante mobilidade de estudantes e professores entre os países para completar a formação, cooperar e realizar pesquisas.

​Nessa cooperação e nesse trânsito, nós pudemos observar uma experiência importante da rede de saúde na Itália, que é a constituição dos Cuidados Intermediários, especificamente observamos o funcionamento de um equipamento o qual eles chamam de “Hospital Comunitário” – podendo ter outro nome pois não tem o funcionamento de um hospital convencional. É uma unidade que tem a vocação para um processo de trabalho centrado nas tecnologias leves, um uso potencialmente benéfico para o cuidado em saúde, ou seja, equipe multiprofissional com fisioterapia, enfermagem, psicologia, assistência social, terapia ocupacional, além da assistência médica, entre outros, para recuperação e reabilitação de pessoas com baixa autonomia ou crônico que eventualmente venha a agudizar. Então ele reduz as internações que são desnecessárias ou inadequadas. Portanto, achamos que essa é uma experiência importante que deveria ser discutida no Brasil.

​No contexto da cooperação nós submetemos um projeto para criar uma experiência de Cuidados Intermediários a um edital de cooperação internacional na Itália, com o apoio da União Europeia que resultou no projeto “RERSUS – Cuidados Intermediários, Troca e Transferência de Instrumentos de Gestão entre Itália e Brasil”, que tem apoio da União Europeia. Esse é um projeto piloto onde estamos implantando uma unidades de Cuidados Intermediários em dois municípios do Rio de Janeiro, Niterói e Nova Friburgo.

Um edital de cooperação internacional na Itália, com o apoio da União Europeia que resultou no projeto “RERSUS – Cuidados Intermediários, Troca e Transferência de Instrumentos de Gestão entre Itália e Brasil

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

Junto com a instalação dessa unidade é desenvolvido um curso de aperfeiçoamento de 180h para formar os profissionais da rede de saúde na concepção e, sobretudo, prática e modo de funcionamento de uma unidade de cuidado intermediário como essa. Até agora o curso tem sido um sucesso, nós temos realizados seminários internacionais via internet e tem sido um movimento de trocas entre as duas turmas do Brasil (Niterói e Nova Friburgo) e a turma de Bologna/Itália – que também desenvolve o mesmo curso. Tem sido um momento de troca muito rico. O projeto está em desenvolvimento e os resultados nós iremos verificar ao final da sua instalação.

IDeF – Para encerrar, como as universidades têm contribuído para a melhoria da saúde pública brasileira?

Túlio – A universidade sempre contribuiu com o desenvolvimento da saúde pública no Brasil. A própria instituição do SUS em 1988 é fruto de um esforço muito grande da universidade, em processos formativos no campo da saúde coletiva especialmente, na associação aos movimentos sociais e aos movimentos de trabalhadores da saúde. Desde sempre a universidade tem tido um papel fundamental. Podemos sistematizar por exemplo, sua participação na formação dos profissionais para as diversas profissões das áreas de saúde; nas pesquisas. São milhões de pesquisas realizadas ao longo da existência do SUS, em diversos temas, tentando dar conta da alta complexidade e da dinâmica intensa que é a construção do Sistema Único de Saúde. E nos projetos de extensão, que são projetos de apoio às redes de saúde no desenvolvimento dos seus projetos, na qualificação de pessoas, na melhora dos serviços de saúde. Então, essas duas instâncias, uma em relação à outra, são indispensáveis. Acho que o serviço precisa da universidade para contribuir com o seu desenvolvimento cotidiano e a universidade precisa do serviço para realizar suas pesquisas, projetos e se atualizar.

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