Artigo de opinião: “O Consórcio Nordeste e a internacionalização dos governos estaduais em meio à pandemia de COVID-19”

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Escrito por Caio Junqueira, Ian Filipe Araújo e Jaqueline Victória Silva (DRI/UFS)

Como síntese dos argumentos expostos, podemos apontar a comprovação da máxima de que “não existe vácuo na política”. A criação do Consórcio Nordeste expõe a iniciativa de ocupar espaços deixados em aberto, tanto na política interna, quanto na externa.”

A existência de consórcios públicos e a ação internacional dos entes federativos brasileiros não representam novidades em nosso país. Então, por que atualmente tanto se fala na mídia ou se debate na academia a respeito do Consórcio Nordeste? Ainda assim, o que existe de “internacional” em tal entidade pública? Para responder e fundamentar as argumentações para tais perguntas, precisamos elencar algumas determinantes tanto de ordem interna do Brasil – podendo ser chamadas de determinantes domésticas – quanto de ordem externa, enfatizando como o Consórcio também realiza iniciativas internacionais.

Uma possível resposta inicial para o primeiro questionamento está em seu ineditismo, uma vez que o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste é o primeiro a ser composto apenas por representantes estaduais, não contando com participações municipais e federal. No Brasil, a constituição de consórcios públicos é respaldada pela Lei 11.107 de 2005 e pelo Decreto 6.017 de 2007, sendo política amplamente utilizada pelos governos locais. Por exemplo, estudos da Confederação Nacional de Municípios (CNM) apontam que, até 2018, aproximadamente 4 mil cidades participavam de ao menos um consórcio público e, entre 2015 e 2017, foram contabilizados 491 novas organizações desse tipo no Brasil. 

Em resumo, o Consórcio Nordeste é uma entidade jurídica estabelecida em lei cujo objetivo é estimular a prestação de serviços e políticas públicas aos cidadãos da região nordeste do país, uma vez que é composto pelos seus nove governos estaduais: Maranhão, Pernambuco, Bahia, Ceará, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí. No dia 14 de março de 2019, lideranças do poder Executivo desses estados assinaram a “Carta dos Governadores do Nordeste” em que explicitavam a criação do órgão, o qual passou a atuar meses depois. Vale destacar que o Consórcio Nordeste é uma organização majoritariamente ampla e ligada às políticas públicas. Um dos seus principais objetivos é realizar compras coletivas, barateando os custos das operações, e isso pode ser realizado internacionalmente, estando diretamente ligado à captação de recursos externos e cooperação internacional em si.

A título de ilustração – e também o que explica o fato do órgão público estar reiteradamente nas mídias digitais e televisivas –, um grande exemplo dessa questão está na compra coletiva de respiradores para serem utilizados em meio ao avanço da pandemia de COVID-19 que tomou proporções de grande escala no país a partir de março, tendo inicialmente alcançado níveis alarmantes em algumas cidades do nordeste como Fortaleza, no Ceará, e Recife, em Pernambuco. Essa questão ainda está em aberto e gerando polêmica, uma vez que determinada aquisição dos respiradores acabou sendo frustrada, pois a empresa não entregou os equipamentos e isso levou à rescisão do contrato. Em Alagoas foi criada comissão legislativa de fiscalização das compras para averiguar ilicitudes e, em Sergipe, alguns deputados estão solicitando a saída do governo estadual do Consórcio. Embora não realizado diretamente pela associação, o governo do Maranhão recorreu diretamente à China para receber cerca de 100 respiradores e 200 mil máscaras ainda em abril, desviando a carga dos Estados Unidos e gerando impasses junto à Receita Federal. As informações sobre esse processo ainda estão sendo recolhidas, o que se sabe até agora é que de fato houve tentativas frustradas de compra de respiradores e retenção de mercadorias nas aduanas dos Estados Unidos destinadas ao governo da Bahia.

Além do fato de estarmos vivenciando uma conjuntura singular marcada pelo avanço de uma nova pandemia global, existem outros fatores que estimularam ainda mais o debate em torno do Consórcio Nordeste em meio à dispersão da COVID-19. Todos são frutos (in)diretos da relação de maior conflito entre os governos estaduais e o governo federal, notadamente na figura do presidente Jair Bolsonaro. Assim, os determinantes são os seguintes: modelo federalista brasileiro, perturbação do governo central em matérias ambientais e climáticas, novas diretrizes da política externa brasileira e estímulo à inserção internacional por parte dos governadores. 

Como se sabe, o Brasil é uma República Federativa e esse modelo tem gerado imbróglios sobre o que é competência de cada esfera governamental. Muitas das controvérsias acerca do Consórcio Nordeste são, justamente, originadas por conta do modelo federalista brasileiro. A Constituição de 1988 estipula que a política externa é uma atribuição apenas do governo central, o que pode caracterizar a inserção internacional dos entes subnacionais como ilegal. No entanto, a atuação internacional dos entes federativos tem aumentado nos últimos anos, e quanto a isso, o Estado brasileiro tem atuado de forma ambígua: ora dando maior abertura quando se trata de atração de investimentos, ora oferecendo maior resistência a iniciativas com outras temáticas. De toda forma, o histórico demonstra uma tentativa do governo central de coordenação das atividades externas dos governos subnacionais. Esses aspectos tornam difícil a inserção internacional dos entes subnacionais e favorecem o surgimento de embates não apenas políticos, como também jurídicos entre a União e os estados. 

Além disso, o federalismo brasileiro não influencia apenas as questões externas do país, mas também as internas, como a arrecadação tributária. Essa questão tem sido uma plataforma do presidente Jair Bolsonaro e do Ministro da Economia, Paulo Guedes, que propõem uma renegociação do Pacto Federativo, o que significaria alterar as competências dos entes federados e a alocação de recursos, que atualmente ficam mais centralizados no governo federal. A repactuação é, inclusive, mais um ponto de discordância entre os governadores do Nordeste, que criticaram a proposta apresentada pelo governo federal.

Um outro fator que surge quando se trata do Consórcio Nordeste é a atuação internacional oposta à da “nova política externa” liderada pelo chanceler Ernesto Araújo. As novas diretrizes da política externa brasileira foram anunciadas como baseadas em quatro eixos: a defesa da democracia, a transformação econômica e o desenvolvimento, a soberania e os valores, conjugados no “conceito unificador” da liberdade. Em termos concretos, essa nova estruturação tem significado um alinhamento do Brasil aos Estados Unidos, críticas constantes ao multilateralismo e à agenda ambiental, o que gerou, inclusive, uma crise diplomática com a França. Com a pandemia de COVID-19, uma série de ataques foram feitos à China pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub e o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o que gerou mais desgaste na relação com o maior parceiro comercial do país. O próprio chanceler, em um texto publicado no seu blog, também teceu críticas à China e atacou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que, segundo ele, seria um instrumento para implantação de um “projeto comunista” a nível global.

No sentido contrário ao do Itamaraty, os governadores nordestinos têm adotado uma postura mais pragmática nas incursões internacionais do Consórcio. Como exemplo, durante a crise diplomática entre o Brasil e a França, uma comitiva foi enviada ao país europeu com o objetivo de atrair investimentos para a região. O mesmo ocorreu mais recentemente com a crise ocasionada pelo novo coronavírus, quando o Consórcio enviou um ofício ao embaixador da China no Brasil solicitando apoio do país no combate à pandemia. 

A inclusão da questão ambiental também é algo que tem sido pautado pelo Consórcio e que se opõe à postura atual do governo Bolsonaro, uma vez que este enfraquece o Ministério do Meio Ambiente, omite o corte do orçamento previsto para fomento de projetos de mitigação a emergências climáticas e negligencia o avanço das queimadas e das invasões de terras indígenas e unidades de conservação. Dessa forma, é tentando compensar o comprometimento da reputação internacional brasileira e de sua habilidade de captação de recursos – tanto para o combate às crises ambientais e climáticas, quanto para a retomada do país após a pandemia – que o Consórcio Nordeste busca contornar a instabilidade brasileira.

Assim, ao ganhar espaço como uma ferramenta para atrair investimentos e alavancar projetos de forma integrada na região, o Consórcio apresenta, entre outras iniciativas, trabalhos para a recuperação e ampliação da caatinga e Mata Atlântica, busca por soluções frente às crises ambientais que ocorrem na região e à “falta de celeridade” do governo federal para a resoluções de diversas problemáticas, principalmente aquelas relacionadas ao meio ambiente.

Já no âmbito externo, a agenda ambiental também foi tema de um dos encontros dos governadores do Nordeste em Paris. Na ocasião, Rui Costa, governador da Bahia e presidente do Consórcio, assinou com a Secretária de Estado da França uma carta de intenção de cooperação nas áreas de meio ambiente e cidade sustentável. A situação, além de demonstrar a iniciativa dos estados no que diz respeito aos aspectos ambientais, também ressalta o fato de que essas diferenças entre as políticas adotadas pelo governo federal e os governos estaduais podem abrir espaço para esses estados se projetarem no cenário internacional.

Portanto, esse estímulo à inserção internacional feito pelos governos estaduais pode ser interpretado como consequência de uma mudança de ordens internacional e interna iniciada com o governo Bolsonaro e marcada por distanciamento do multilateralismo e imprevisibilidade. Dessa maneira, com a aceleração da pandemia de COVID-19 no Nordeste, os governadores da região, através do Consórcio, pensam em saídas conjuntas para superar obstáculos, como a compra de equipamentos médicos, as contratações de profissionais, a assistência à população e outros aspectos que o governo central não gere de maneira efetiva ou não tem competência própria. 

Como síntese dos argumentos expostos, podemos apontar a comprovação da máxima de que “não existe vácuo na política”. A criação do Consórcio Nordeste expõe a iniciativa de ocupar espaços deixados em aberto, tanto na política interna, quanto na externa. As discrepâncias existentes entre as unidades da federação e o abandono de pautas internacionais até então tradicionais da política externa brasileira são alguns dos exemplos desses “vácuos” que os governos do Nordeste buscam ocupar. Resta acompanhar se essa ofensiva será bem-sucedida e se o dinamismo apresentado até então resistirá aos impactos, especialmente na credibilidade, trazidos pela pandemia.

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