No fim do mês de agosto de 2021, a prefeitura de Belém assinou um Termo de Cooperação Técnica com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), para a promoção de políticas públicas voltadas para indígenas e imigrantes. Como se deu a articulação com a ACNUR e quais as ações previstas para esse projeto?
Danielle: A Funpapa já teve em 2019 um acordo com a ACNUR e executamos em conjunto várias ações no município em relação aos imigrantes indígenas venezuelanos da etnia Warao. Essa proposta de fechar um novo acordo de cooperação se deu devido ao vencimento do termo anterior, e para que tivéssemos um termo que servisse como um “guarda-chuva” para aquilo que estávamos dialogando e planejando implementar. Nesse sentido, podemos dizer que avançamos bastante, porque esse segundo termo foi bem mais abrangente. A primeira atuação foi específica com o espaço de atendimento – Espaço de Atendimento Indígena Tapanã, que no momento atende a 41 famílias. Hoje temos em torno de 175 indígenas Warao naquele espaço de acolhimento – é o maior espaço de acolhimento da Fundação específico para esse público. Quando a gente fechou esse novo termo, nós tomamos a decisão de universalizar o serviço. Anteriormente em Belém, o serviço ficava reduzido ao Núcleo de Atendimento aos Migrantes e Refugiados (NAMR), que fica na sede da Fundação, e é um espaço de acolhimento do Tapanã.
O processo de universalização visa a transferência para os nossos CRAS e CREAS – Centro de Referência da Assistência Social e Centro de Referência Especializado de Assistência Social, respectivamente -, para que eles também atendam essa população migrante, junto com a ACNUR. Assim, nós fizemos a formação de vários CRAS e CREAS e hoje temos boa parte da rede já no atendimento. Algumas unidades têm uma inserção maior, por conta do território em que essa população está, como por exemplo nosso CRAS em Outeiro – os indígenas já têm acesso não só ao CADÚnico, mas também a serviços de convivência, que é algo inédito aqui em Belém. Então todos os serviços de assistência que a gente tem hoje já são concedidos e essa população é atendida. Os CREAS também têm feito o trabalho de abordagem, principalmente em Icoaraci, que é um dos locais que a gente tem a maior concentração dessa população indpigena Warao.
Em relação às outras populações imigrantes, também temos atendimento Este foi um dos avanços que tivemos com o novo termo do ACNUR. Antes nosso atendimento era mais voltado ao público indígena – que está em maior posição de vulnerabilidade na cidade, mas não é a única população migrante que a gente atende. Então incluímos no termo o apoio e o atendimento generalizado para outros grupos de migrantes e refugiados que estão atualmente em Belém. Temos alguns do Oriente Médio, alguns venezuelanos não indígenas, mas temos principalmente haitianos (segunda maior concentração de imigrantes no município, depois dos povos Warao). Então temos conseguido fazer o atendimento de toda essa população aqui em apoio com a parceria da ACNUR. A gente conseguiu concretizar bastante coisa, já vínhamos dialogando sobre um projeto com uma das executoras parceiras do ACNUR – no tema de geração de emprego e renda. Esse é um projeto que está em andamento, com a construção de um perfil para emprego específico para a população Warao. Recentemente inauguramos uma sala de estudos informatizada dentro do espaço Tapanã.
O ACNUR também fez doações para vários outros espaços de acolhimento, nos quais temos crianças Warao. Também temos espaços para pessoas idosas e pessoas em situação de rua que recebem imigrantes não-Warao. Houve uma doação de equipamentos, ventiladores, panelas, vários utensílios domésticos para que a gente pudesse ampliar nosso atendimento. Além disso, temos nossos Ciclos de Formação e Planejamento. Estamos desenvolvendo o protocolo do espaço, que não tínhamos antes. Isso porque, como o espaço foi feito no primeiro momento, de forma emergencial, acabou não tendo um protocolo de atendimento. Então, nós estamos nesse processo, constituímos câmaras técnicas com servidores e parceiros no sentido de constituir esse fluxo e organizar o funcionamento do espaço, que apesar de estar dentro das ciências sociais ele tem especificidades por ser um público migrante e indígena. O mesmo vale para a adequação nos outros espaços que tem atendido migrantes e refugiados, tanto os que atendem crianças quanto para suas famílias. Estamos formando os servidores e reordenando nossos processos para atender tais públicos da forma mais adequada possível. E temos contato com a parceria do ACNUR para concluir esse processo.
Estamos formando os servidores e reordenando nossos processos para atender tais públicos da forma mais adequada possível. E temos contato com a parceria do ACNUR para concluir esse processo.
Danielle, você citou diversas ações que a Funpapa vem desenvolvendo em parceria com a ACNUR, a maioria destas desenvolvidas durante a pandemia. Há algumas atividades, no entanto, que foram iniciadas ainda antes da pandemia. Você poderia comentar como se deu esse processo de adaptação entres os períodos pré-pandemia e pandemia, para a assistência prestada pela Funpapa?
Danielle: É, foi bem complexo. Qualquer atividade da assistência social não é simples, você está lidando com vidas humanas ali. Ainda se une à complexidade que é trabalhar com essa população, então quando você tem o processo da pandemia, dobra a dificuldade. E esse é o maior espaço que temos. A capacidade dele representa a capacidade somada de todos os outros espaços de acolhimento que a Funpapa administra, então não é fácil. Soma-se o contingente de pessoas, a questão do espaço ser muito amplo, a questão de infraestrutura, de transporte, de pensar atividades, de você se ver dentro de um espaço pensado de acordo com faixas etárias… e quando você fala desses espaços de atendimento especificamente para a população Warao, você trata de crianças recém-nascidas até pessoas idosas, então você tem uma população de todas as idades, todos convivendo juntos. É verdadeiramente um universo.
Qualquer atividade da assistência social não é simples, você está lidando com vidas humanas ali.Soma-se o contingente de pessoas, a questão do espaço ser muito amplo, a questão de infraestrutura, de transporte, de pensar atividades, de você se ver dentro de um espaço pensado de acordo com faixas etárias… e quando você fala desses espaços de atendimento especificamente para a população Warao, você trata de crianças recém-nascidas até pessoas idosas, então você tem uma população de todas as idades, todos convivendo juntos. É verdadeiramente um universo.
Para o exercício das atividades foi preciso construir todo um processo de atividade para esses vários públicos, o que demanda bastante. Então, a gente conta principalmente com a parceria com a SEMEC – Secretaria Municipal de Educação. As aulas vêm sendo feitas dentro do espaço de atendimento. Até tivemos expectativas de um retorno presencial no início do ano, mas não foi o que aconteceu – tivemos uma segunda onda, passamos por dois lockdowns neste primeiro semestre e, para as crianças que estavam matriculadas no ensino regular, encontramos várias dificuldades para assistirem às aulas. Então contamos com as parceiras para garantir que essas crianças não ficassem fora da escola, assim como os jovens que conseguiram passar para vestibulares. Temos alguns jovens Warao que entraram para a universidade, por exemplo. Contamos inclusive com a parceira da Unicef, que é um outro parceiro nosso dentro do espaço, para garantir principalmente a educação infantil. E a organização que vinha trabalhando a educação infantil – o Aldeias Infantis – vem sob o guarda-chuva do ACNUR para continuar e até intensificar as atividades. Agora com o retorno gradual das aulas presenciais, a população Warao dentro e fora do espaço de acolhimento foi toda vacinada, então essas crianças já estão retornando ao espaço da escola. Mas, antes disso, elas estavam no próprio espaço de acolhimento, junto com a equipe de educadores e com alguns equipamentos que temos destinados às populações Warao, que também é fruto da parceria com a ACNUR.
Esses equipamentos ajudaram no período de pandemia para que parte dessas aulas fossem assistidas dentro do espaço. Esses foram alguns pontos dentro da agenda que foram adequados, mas nem todos os pontos nós conseguimos adaptar perfeitamente. Por exemplo, nós também fazíamos atividades externas com diversas faixas etárias, como os passeios, mas tivemos que suspender. Então, tivemos diversas atividades que tiveram que ser suspensas, remarcadas ou replanejadas para evitar qualquer processo de aglomeração, principalmente fora do espaço. No final das contas nós tivemos muitas atividades externas que passaram a ser feitas dentro do espaço de acolhimento também – nós contamos com alguns espaços de lazer, com atividades esportivas, rodas de diálogo e outras atividades como o artesanato.
IDeF – A Fundação Papa João XXIII (Funpapa), que dispõe de um Núcleo de Refugiados, coordena e monitora políticas municipais para imigrantes. Como funciona o monitoramento por parte da Funpapa em políticas como essas previstas na cooperação com a ACNUR? Qual o papel do Núcleo de Refugiados?
Danielle: Nós temos aqui o Núcleo de Atendimento aos Migrantes e Refugiados (NAMR). Quando a gente chegou, tinha um espaço específico de atendimento – até pela grande demanda, não havia tempo nem equipe para conseguir construir qualquer outro processo que não fosse atender essa população. Agora, estamos passando por um processo de ressignificação desse Núcleo. A nossa pretensão é que o Núcleo atual seja de atenção e que se volte para políticas públicas, com o monitoramento e o debate. Nesse sentido a gente conseguiu uma câmara técnica para o processo. Embora o Núcleo ainda trabalhe com assistência na acolhida inicial, pois, ele ainda é um ponto de referência. Mas, a partir do momento que a gente conseguir fazer com que esse atendimento inicial seja distribuído nos CRAS e CREAS, entendemos que o NAMR deva assumir o papel de condutor ao invés de equipamento de atendimento, especificamente. É nesse sentido que a câmara técnica vem discutindo esse processo.
Em relação à política pública, a própria câmara técnica de migrantes e refugiados interna da Funpapa vem fazendo um debate de um plano socioassistencial específico para migrantes refugiados, considerando aquilo que já fazemos. Nós temos um comitê municipal formado por várias secretarias, principalmente aquelas que já estão ligadas de forma direta ou indireta à essa população. É esse grupo de trabalho que tem como função pensar a política específica municipal para migrantes e refugiados – enquanto nós trabalhamos o socioassistencial, o comitê trabalha a articulação intersetorial com as outras secretarias.
Para além do último Termo firmado, a prefeitura de Belém tem tomado outras ações para garantir assistência social da população indígena Warao, principal público para políticas migratórias no município?
Danielle: A prefeitura tem feito esforços para que seja construída uma política municipal intersetorial, que abranja várias secretarias. Estamos dialogando com a Secretaria de Economia (SECON), no sentido de alocar espaços de feiras para populações imigrantes, principalmente para mulheres Warao que produzem artesanato. Algumas já vendem, só que nas ruas, então nós precisamos fazer esse mapeamento das pessoas que produzem e fazer esse diálogo junto a SECON, inclusive com a possibilidade de fazer uma feira migrante, que está apenas em fase de idealização por enquanto. Já tivemos algumas experiências nas quais conseguimos levar essas famílias que produzem para comercializar em feiras pontuais. Então, sempre que surge uma agenda nós colocamos os materiais delas tanto para exposição quanto para a própria venda.
Além disso, estamos estudando a questão de perfil – a maioria já chegou da Venezuela com uma baixa escolaridade, então, temos feito um exercício junto com a SEMEC, que conta com o projeto “Belém Alfabetizada”, para a inclusão da população Warao. Nesse sentido, estamos pensando na capacitação de formação para emprego, mas tudo ainda dentro da nossa área. Quando o planejamento transborda para outras áreas, nós fazemos o diálogo com outras secretarias. A Secretaria de Municipal de Saúde (Sesma), por exemplo, já tem o consultório na rua, que trabalha junto com nossos equipamentos dentro do espaço de acolhimento do Tapanã. Lá temos políticas específicas da saúde e não apenas da assistência social. A vacinação foi uma ação integrada entre assistência social e saúde. A Fundação Cultural do Município de Belém (FUMBEL) também tem dialogado conosco para construirmos um projeto cultural indígena, incluindo a cultura Warao na proposta da prefeitura da Bienal das Artes. Então, é esse o ponto, dialogar com tudo. Hoje, como a maioria das questões estão vinculadas à assistência social, nós temos sido o primeiro órgão de contato dessa população. Mas, no fim das contas, temos desenvolvido esse papel de articulador de políticas não só interno à Fundação, mas também entre secretarias. Contamos muito com o apoio da prefeitura nesse sentido.
Existem outras políticas públicas voltadas para povos indígenas e imigrantes que a prefeitura de Belém tem desenvolvido junto a organismos internacionais, nesse período de pandemia?
Danielle: O principal executor é a Fundação, tanto que o termo foi firmado pelo ACNUR com a Funpapa. Mas, nós também contamos com parcerias em outros órgãos municipais. As outras secretarias têm parcerias com organismos como a UNICEF por exemplo, mas contam com políticas mais amplas, sem um recorte voltado para a população indígena e imigrante.
Por fim, ainda sobre a pandemia, nós do IDEF gostaríamos de saber, ao seu ver, quais as principais lições aprendidas pela Funpapa (e pela prefeitura de Belém) com a cooperação internacional?
A cooperação internacional tem sido importantíssima para nós da Funpapa, por ser o processo do primeiro contato dos servidores com essas dinâmicas.
Danielle: A cooperação internacional tem sido importantíssima para nós da Funpapa, por ser o processo do primeiro contato dos servidores com essas dinâmicas. O Brasil não foi o único, mas é um dos raros países que têm o Sistema Único de Assistência Social. O município de Belém está registrado, inclusive, como tendo boas práticas internacionais nesse sentido de acolhimento. Mas, o SUS não é preparado para o tratamento de imigrantes e refugiados, o que temos é uma adaptação desse sistema para essa população, principalmente os refugiados, que estão em uma condição de extrema vulnerabilidade. Assim, temos adequado nossos serviços e benefícios. Nós já temos CRAS indígenas e quilombolas no Brasil, porém, fazer com que um dos nossos espaços atenda populações com uma nova gama de especificidades e que procuram serviços que por vezes a assistência não tem muitas informações sobre, é um grande desafio. Mas, já vem acontecendo nacionalmente. O próprio sistema se renova com o passar do tempo.
As parcerias com o ACNUR e com o UNICEF têm trazido frutos muito positivos. Eles nos ajudam tanto na formação quanto na distribuição de equipamentos, além da articulação política para conquistarmos novos projetos para o município. Nesse sentido, o que temos de diferencial, além de sermos a capital e de termos a concentração maior de imigrantes e refugiados aqui do Estado do Pará, é o nosso modelo de gestão. Ele tem sido muito próximo dos outros espaços de acolhimento, que tem todo um processo de proteção, pois são pessoas que vem de uma realidade absurdamente diferente da nossa. Já tivemos pessoas que não sabiam como funcionava a entrega de gás de cozinha aqui, porque a entrega acontece de forma diferente de onde eles vieram. Então, quando não há alguém para explicar como tudo funciona, fica complicado. Já quando a gente utiliza o espaço, as pessoas têm acesso à informação, orientação e acesso à saúde, que é uma grande dificuldade para elas.
Esse foi um dos pontos em que entraram os parceiros internacionais – o UNICEF fez um mapeamento e contribuiu no nosso atendimento para que quando chegasse algum falante da língua Warao, houvesse um tradutor em algum ponto específico que pudesse mediar o atendimento.
A mediação na tradução também é extremamente importante. Nós contamos com poucos tradutores, porque a maioria hoje já entende bem o português. Mas, principalmente, idosos e crianças ainda têm dificuldade. Alguns falam mais o espanhol e alguns só falam o Warao. Esse foi um dos pontos em que entraram os parceiros internacionais – o UNICEF fez um mapeamento e contribuiu no nosso atendimento para que quando chegasse algum falante da língua Warao, houvesse um tradutor em algum ponto específico que pudesse mediar o atendimento. Então temos alguns intérpretes, localizados no Tapanã e no Núcleo, para o atendimento das unidades. Temos atualmente 12 CRAS e 5 CREAS, mas quando precisamos de um auxílio extra nós solicitamos a esses parceiros internacionais.