Como Estados e municípios brasileiros podem cooperar no tema Segurança Alimentar?

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Os municípios há muito vem exercendo um papel central na política de soberania e segurança alimentar e nutricional, através por exemplo do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) estabelecido pela LOSAN (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional). Em entrevista concedida ao IDeF, Marcos Lopes Filho, membro do Instituto Fome Zero (IFZ) e doutorando em saúde global e sustentabilidade, nos conta que “os municípios têm um papel central na implementação e estruturação dessas políticas e durante os últimos anos, especialmente frente a ausência do governo federal, em termos de priorização desse tema, a gente tem várias experiências de municípios que de alguma forma se organizaram para responder à ausência da União. Nós temos uma série de exemplos de como os municípios se organizaram na pandemia, seja por exemplo em conseguir manter a compra da alimentação escolar da agricultura familiar, em conseguir articular a distribuição de cestas e benefícios eventuais com a compra da agricultura familiar,  de conseguir estabelecer equipamentos emergenciais de abastecimento popular e de manutenção das feiras livres dada as condições sanitárias. Citando exemplos temos os municípios de Araraquara, Contagem, Juiz de Fora, Belo Horizonte”

O município de Contagem vem se tornando referência na promoção de políticas públicas que visam uma alimentação adequada e saudável, através da comercialização de alimentos agroecológicos, da educação alimentar e do combate ao desperdício, dentre outros. Nesse sentido, a prefeitura do município, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Segurança Alimentar vem lançando uma série de campanhas como a “Contagem Sem Fome”, buscando garantir o direito à alimentação para todas as pessoas. 

Com isso, complementa Marcos Lopes: “A cooperação descentralizada tem tido um papel central na agenda da soberania e segurança alimentar e nutricional desde, por exemplo, o processo das redes de mercocidades e das redes municipais de cooperação no orçamento participativo. Nesse sentido, a gente tem experiência ao longo de 20, 30 anos de como a cooperação descentralizada desempenhou um papel muito importante na construção e consolidação de políticas públicas para a segurança alimentar e nutricional no âmbito municipal. Mais recentemente isso tem sido sistematizado a partir do Pacto de Milão e toda uma agenda que se organiza no âmbito das Nações Unidas sobre a agricultura urbana, periurbana, o papel das cidades nos sistemas alimentares e a relação do urbano e do rural, então você tem vários municípios no sul global que são signatários do Pacto de Milão e que tem uma participação muito ativa seja nesse espaço ou na rede de cidades, por exemplo, que debatem a agenda do desenvolvimento sustentável.”

Apesar dos avanços nesse sentido, o descaso do governo federal frente a políticas de combate à fome é muito superior ao que é desenvolvido nos âmbitos municipal e estadual. Ao invés de operar como um propulsor para a cooperação internacional descentralizada, o governo central age como um limitador, conforme explica o professor Gilberto Rodrigues: “No caso do Brasil, devido a um governo federal hostil às relações intergovernamentais e à cooperação federativa, tanto a cooperação descentralizada prestada quanto à recebida foram prejudicadas e a muito custo econômico e político sobreviveram e foram além de suas possibilidades, mas concentradas sobretudo no combate à pandemia”.

Alguns anos atrás foram realizadas políticas agressivas de combate à fome pelo Brasil, com a distribuição de alimentação escolar que envolvia a compra de alimentos direto dos produtores familiares e o Fome Zero. Em 2014, o Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome. Havia se tornado referência mundial com o programa Fome Zero, ponto de partida do combate à fome como política de Estado em pleno século 21. Inclusive parte dessas políticas foram internacionalizadas. O que você enxerga como fatores principais que fizeram esse quadro mudar?

É importante a gente lembrar que desde os anos 1950 o Josué de Castro já mostrava de forma muito sistemática como a fome é um problema político, o que sempre é importante ser relembrado, especialmente porque no contexto da pandemia vemos explicações para volta da fome como se ela fosse algo natural, consequência da pandemia ou um desfecho da crise econômica, então é bom, ainda mais nesse momento relembrar o Josué de Castro e todo o acúmulo desde de que ele propôs esse constructo de que a fome ela é uma questão política. O que permitiu que o Brasil saísse do mapa da fome foi uma decisão política, foi sim a qualidade dos programas e das políticas, qualidade que foi reconhecida por diversos organismos internacionais, governos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, partidos no mundo inteiro, e que se inspiraram de alguma forma nas políticas brasileiras que acabaram circulando, especialmente as de mercados institucionais, compras da agricultura familiar, alimentação escolar. Então a qualidade dessas políticas foi fundamental para essa circulação, mas acho que sobretudo nós precisamos recuperar o caráter político da política pública, que foi um dos principais fatores, reconhecido por uma série de estudos que analisam essa circulação internacional das políticas públicas, de sucesso das políticas foi justamente a alta prioridade que foi dada à decisão política de que em se tratando de fome o único número aceitável era 0. Então se a gente considera que os fatores de sucesso foram a alta prioridade política, a qualidade do desenho, a intersetorialidade e o controle social fica mais fácil a gente entender os principais fatores que fizeram esse quadro mudar ou reverter: principalmente a baixa prioridade dada a esse tema, o tema da segurança alimentar e nutricional, o tema da fome ele praticamente desaparece da agenda política desde o golpe de 2016, ainda de forma mais acentuada desde as eleições de 2018 com um total desmonte das políticas públicas, desfinanciamento das PP, então a gente tem um primeiro elemento que é a falta de prioridade dada ao tema, acho que um segundo elemento é o fim do controle social, então a extinção do CONSEIA, a desarticulação de todo um sistema de participação social de construção da sociedade civil em várias instâncias da PP, do fazer da política pública de soberania e segurança alimentar e nutricional e também um terceiro ponto é o fim da intersetorialidade, então a KAISAN ela esteve completamente desarticulada, ela não funcionou nos três primeiros anos de governo e foi retomada recentemente, mas absolutamente esvaziada do seu caráter político e das sua qualidade institucional, então eu diria que os mesmos elementos que fizeram com que o Brasil saísse do mapa da fome, o fato de que a gente enquanto sociedade abandonou esses elementos, justificam esse retorno tão acentuado 

A situação da fome no Brasil vem sendo agravada desde a recessão econômica e a pandemia. O descaso do Governo Federal com a questão é certamente um agravante. Qual o papel dos governos municipais neste contexto? Existem ações municipais de enfrentamento à fome? 

Acho que é importante pontuar que a pandemia e a recessão econômica são fatores que influenciam o crescimento da insegurança alimentar e nutricional, mas é importante a gente relembrar que o Brasil passou pela crise de 2008 que foi muito mais profunda que a crise atual, a gente passou pela pandemia do H1N1, a gente passou pela pandemia do Zika vírus e também em uma direção de diminuição da fome, então eu trago esses dois exemplos de que o país já tinha enfrentado – óbvio que as proporções não são necessariamente comparáveis -, mas o país já tinha enfrentado pandemias, recessões econômicas e sem com que os indicadores de fome tivessem crescido, mas que pelo contrário eles tivesse diminuído, então é importante a gente pontuar que ainda que a recessão econômica e a pandemia influenciem, tem outros fatores que são mais determinantes nesse processo, como bem colocado na pergunta. E aí o papel dos governos municipais é central, os governos municipais já tinham um papel central na política de soberania e segurança alimentar e nutricional já tinham um papel no SISAN (sistema nacional de segurança alimentar e nutricional) já tinha um papel estabelecido pela LOSAN (lei orgânica de segurança alimentar e nutricional) então os municípios têm um papel central na implementação e estruturação dessas políticas e durante os últimos anos, especialmente frente a ausência do governo federal, em termos de priorização desse tema, a gente tem várias experiências de municípios que de alguma forma se organizaram para responder, óbvio que não substituir, é impossível substituir o papel da União nesse caso, mas que se organizaram e se articularam muito bem. A gente tem os exemplos de Araraquara, Contagem, Juiz de Fora, Belo Horizonte. A gente tem uma série de exemplos de como os municípios se organizaram na pandemia, seja por exemplo em conseguir manter a compra da alimentação escolar da agricultura familiar, em conseguir articular a distribuição de cestas, benefícios eventuais com a compra da agricultura familiar  de conseguir estabelecer equipamentos emergenciais de abastecimento popular, de manutenção das feiras livres dada as condições sanitárias. Então a gente tem experiências muito interessantes de como os municípios se organizaram seja para manter ativos equipamentos públicos e políticas que faziam parte do SISAN, mais também ações emergenciais que respondessem e dialogassem com o contexto de excepcionalidade da pandemia. E, importante pontuar que na maioria dos casos sempre que os municípios tiveram experiência exitosas foi em trabalho muito direto com os CONCEIAS ( conselhos municipais de segurança alimentar e nutricional), em alguns casos os CONSEIAS tendo um papel muito protagonista disso, de pressionar de exigir, de demandar do poder público e inclusive apontar os caminhos, com a criação de comitês de crises, observatórios de insegurança alimentar e nutricional durante o período da pandemia, articulando as inúmeras ações de solidariedade entre pares que surgiram durante a pandemia articulando isso com a política pública, politizando essas ações de solidariedade, então tem sim experiências muito exitosas no âmbito municipal.

Ainda sobre o protagonismo de ações municipais quanto ao combate à fome e à pobreza e abrindo o espaço para a atuação de outros atores como as ONGs, você enxerga a possibilidade de buscar cooperação internacional descentralizada para combater a fome e a insegurança alimentar? Existe alguma ação nesse sentido do Instituto Fome Zero? Se sim, qual? Se não, o que justifica a ausência?  

A cooperação descentralizada tem tido um papel central na agenda da soberania e segurança alimentar e nutricional acho que a gente pode voltar desde o processo das redes de mercocidades, então desde o processo das redes municipais de cooperação no orçamento participativo, então a gente tem experiência ao longo de 20, 30 anos de como a CD desempenhou um papel muito importante na construção e consolidação de PP para a segurança alimentar e nutricional no âmbito municipal, acho que mais recentemente a gente tem isso sistematizado a partir do pacto de Milão e toda uma agenda que se organiza no âmbito das Nações Unidas sobre a agricultura urbana, periurbana, o papel das cidades nos sistemas alimentares essa relação do urbano e do rural então você tem vários municípios no sul global que são signatários do pacto de Milão e que tem uma participação muito ativa seja nesse espaço ou na rede de cidades, por exemplo que debatem a agenda do desenvolvimento sustentável, a agenda 20/30 e os objetivos 1 e 2, então a CD historicamente tem um papel na agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional e acho que nesse contexto não só de ausência do poder público, mas em que ele acaba agindo quase de forma contrária à soberania e segurança alimentar e nutricional a cooperação descentralizada tem o papel fundamental de fortalecer os municípios nessa agenda seja em termos de intercâmbio de experiências, assistência técnica e de mobilização de recursos então a CD tem um papel central. No âmbito do IFM a gente tem trabalhado muito com os municípios então você consegue encontrar no canal do youtube  do instituto duas lives que foram feitas sobre o papel dos municípios nessa agenda a gente tá trabalhando agora um curso com gestores municipais sobre o papel e centralidade dos municípios na agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional, obviamente  tendo a CD como um dos elementos chaves nesse processo, então acho que tem sim experiências muito exitosas de como cooperações entre cidades,  elas se organizem em torno dessa agenda e a contribuição enquanto IFM nós temos feito nesse curto período de funcionamento do instituto é de trabalhar a formação, esse intercâmbio de experiências, a capacitação dos municípios, dos atores atuando na agenda municipal,  mas acho que muito abertos a estruturar uma forma um pouco mais sistemática essa dimensão da CD

REFERÊNCIAS

FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome, FAO. https://doi.org/10.4060/cb4474en

FILHO, Marcos L. Entrevista Fome e ações municipais. [Entrevista concedida a] Isabella Kettuly. IDeF (https://idefufpb.com/), 27 abr 2022.

PREFEITURA DE CONTAGEM. Prefeitura lança campanha de segurança alimentar “Contagem Sem Fome”. Acesso em 04 maio 2022. Disponível em: <https://www.contagem.mg.gov.br/novoportal/prefeitura-lanca-campanha-de-seguranca-alimentar-contagem-sem-fome/>. 

SANTIAGO, Liziane Aline. Internacionalização da política pública de segurança alimentar e nutricional no contexto da Paradiplomacia em uma metrópole brasileira. 2020. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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