A Cooperação Acadêmica Internacional com o ACNUR e a alocação do migrante e refugiado no mercado de trabalho

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Mariane Silveiro é graduanda do sétimo período em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, pesquisadora no Grupo de Pesquisa e Extensão em Estudos de Paz do Unicuritiba e membro da Clínica de Direito Internacional do Unicuritiba. É coordenadora de Comunicação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Unicuritiba, onde é voluntária desde fevereiro de 2020. Foto: Arquivo Pessoal.
Phietra Laidens é bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, monitora e pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos do Unicuritiba, onde pesquisa sobre o sistema interamericano de proteção de direitos humanos. Além disso, é membro da Comissão de Diversidade e Inclusão e da Clínica de Direito Internacional do Unicuritiba. É coordenadora de Imagem Pública e do Grupo de Estudos em Migração da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Unicuritiba, onde é voluntária desde março de 2021. Foto: Arquivo Pessoal.
Geovana Pellegrini é graduanda do quinto período em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, Voluntária Líder no programa de voluntariado nacional do UNICEF Brasil e uma das fundadoras do Projeto Connect, atuando na gestão da iniciativa e na coordenadoria de Relações Públicas e Comunicação desde março de 2021. Foto: Arquivo Pessoal.

O IDeF entrevistou Mariane, Piethra e Giovana que explanaram acerca da cooperação internacional existente entre o Centro Universitário de Curitiba (UNICURITIBA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o ACNUR. Essa cooperação se deu através da integração da Unicuritiba à Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), por meio do qual a ACNUR visa o desenvolvimento do tripé universitário – o ensino, a pesquisa e a extensão – delimitados na temática do refúgio. Nesse sentido, há a exposição das ações realizadas pela Unicuritiba, com o intuito de prestar assistência à comunidade refugiada e imigrante vivente na cidade de Curitiba.

A universidade passou a integrar a Cátedra Sérgio Vieira de Mello em 2021, tendo como foco o auxílio a migrantes e refugiados. Como ocorreu esse processo de cooperação e por que o interesse em auxiliar esse público? 

Mariane Silveiro: Desde 2015 a nossa universidade promovia palestras e eventos voltados para essa temática de migrações, devido a conexão com o curso de Relações Internacionais e Direito. Em 2020 teve a criação e consolidação do Núcleo de Migrações dentro do Laboratório de Relações Internacionais como um projeto de extensão. O projeto tinha por ideia inicial o auxílio jurídico para a comunidade imigrante, como residência, refúgios e naturalização e outros documentos e processos necessários, considerando o grande fluxo migratório na cidade de Curitiba, no Paraná Com a pandemia, os alunos, junto com a professora coordenadora, adaptaram as ações que faziam para o modelo online. Assim, passou a se desenvolver cartilhas com as informações sobre direitos migratórios e procedimentos e formou-se aulas de português online e gratuitas, organizadas por estudantes voluntários. 

Com a expansão do curso de português e como o Núcleo realizava diversas palestras, houve o contato com o ACNUR que consolidou a conexão para integração de obter o selo de Cátedra Sérgio Vieira de Mello. Esse processo de cooperação começou no final de 2020 e se encerrou apenas em 2021, porque há uma série de requisitos que precisam ser cumpridos, então houve tanto uma avaliação interna, como deles também, até passarmos a integrar [a Cátedra]. 

Antes de integrar a CSVM vocês possuíam um Núcleo de Migrações do Laboratório de Relações Internacionais, correto? Como funcionava esse núcleo e de que forma a entrada na CSVM impactou a atuação de vocês?

Mariane Silveiro: O Núcleo de Migrações era um projeto de extensão da faculdade, que tinha por objetivo inicial ser uma atividade prática para os alunos de Relações Internacionais. Desta forma, era composto por uma professora coordenadora e um grupo de voluntários. Pelo caráter de extensão, algumas atividades eram realizadas no contraturno e outras integradas nas disciplinas do curso de Relações Internacionais, por exemplo. 

Com a entrada do selo CSVM temos dois aspectos positivos bem práticos: O primeiro são as doações diretas recebidas do ACNUR, como colchões e cobertores, que repassamos diretamente para a comunidade vulnerável. O segundo ponto é a notoriedade e confiança da comunidade imigrante, possibilitando maior alcance e efetividade nas atividades.

Quais são as ações desenvolvidas atualmente pela universidade no auxílio ao imigrante e refugiado? Vocês atuam só na região ou possuem uma atuação mais ampla?

Mariane Silveiro: Na CSVM-Unicuritiba realizamos diversas iniciativas: como as aulas de português, o auxílio jurídico, a produção de materiais, a tradução, a comunicação para redes sociais, grupo de estudos e a filantropia. Com os 2 anos de pandemia, as aulas de português se tornaram a principal atividade, alcançando o Brasil todo. Desta forma, temos alunos residentes de praticamente todos os estados brasileiros. A partir da flexibilização da pandemia, temos tentado direcionar as atividades para Curitiba e região, para ter mais ações presenciais.

Especificamente sobre o auxílio na inserção do migrante no mercado de trabalho, o que tem sido feito e que impactos tem gerado?

Mariane Silveiro: Na nossa universidade, em 2021, surge o Projeto Connect, um outro grupo de alunos voltado para à empregabilidade de refugiados e imigrantes. Desta forma, eles realizam oficinas de organização de currículo, capacitações, cursos, apoio à inscrição em projetos sociais e apoio ao aprendizado na língua portuguesa. Com esses dados, eles fazem as conexões com as empresas para realizar esse vínculo de trabalho. 

Geovana Pellegrini: O projeto Connect começou em 2021, como uma extensão fora da Cátedra, a partir do desejo da Professora Helaine Badia, que é envolvida na questão de trabalho e emprego, em fazer algo pela comunidade de imigrantes, bem como tratar da temática da diversidade. Ela pensava em ajudar imigrantes e trabalhar com eles, mas não sabia bem como poderia fazer isso em termos práticos, então decidiu contar com a ajuda e criatividade dos alunos da universidade, criando um projeto de extensão – de início sem nome ou estrutura definida, mas com uma ideia inicial, uma proposta de construção bem livre e muita vontade de fazer a diferença. Ainda no meu primeiro ano de universidade eu entrei na extensão, dentro dessa ideia inicial que era apenas uma sementinha, como costumamos dizer, e junto de outros alunos construímos o projeto ao longo de 6 meses

Então o Projeto, em seu primeiro ano, não surge delineado e nem conectado com a Cátedra, mas quando a universidade recebeu o selo do ACNUR, eles entenderam que o Connect estaria dentro da Cátedra. Apesar dessa consideração por parte da Universidade, seguimos o nosso Projeto de forma autônoma nesse ano inicial, buscando parcerias e atuando em rede com outras instituições, como a regional paranaense da Cáritas Brasileira, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mas ainda sem saber bem qual era nosso espaço na Cátedra. E apesar de fazermos parte desde o ano passado, foi nesse ano de 2022 que estreitamos nossos laços e passamos a atuar junto da Cátedra, captando imigrantes, atendendo quem nos encaminham, principalmente por causa das aulas de português, e até produzindo conteúdo junto, como uma cartilha trabalhista que foi lançada alguns meses atrás.

Sobre o que tem sido feito, temos o foco na produção de currículos dos imigrantes em português e fazemos isso de uma forma bem humanizada – ou seja, não só colocamos as informações em um documento, mas os voluntários do nosso projeto entram numa sala do zoom ou meet com cada imigrante, individualmente, conversam com o imigrante e tentam entender sua história: o que fez, o que quer fazer no Brasil, quais os objetivos de vida e carreira no Brasil, entre outros, até porque muitos têm a necessidade de contar sua história. A partir dessa conversa informal, com a criação de um espaço confortável e aberto para dúvidas, os nossos voluntários constroem os currículos desses imigrantes, tendo como base os modelos e as instruções que recebem da coordenação do projeto, que tem um conhecimento acumulado em 2 anos de projeto. E como resultado disso, entregamos um currículo forte e bem construído a eles, visando auxiliar os imigrantes em sua busca pela colocação no mercado de trabalho brasileiro. 

Apesar de nem todos nós sabermos disso, muitos imigrantes têm dificuldade nessa parte de currículo não só pelo português, mas pelo formato utilizado no Brasil ser diferente dos outros países, e nós entramos para ajudá-los nesse sentido, mostrando como podem traduzir efetivamente suas experiências de trabalho em um currículo nos moldes do nosso país. Além disso, buscamos mostrar como a forma com que constróem seus currículos pode facilitar a entrada deles no mercado de trabalho, porque é através do currículo que eles podem mostrar para o recrutador que, mesmo não tendo trabalhado em certa função no Brasil, eles conseguem sim desenvolver as atividades exigidas porque já desempenharam funções bem parecidas no seu país natal. Nesse sentido, temos feito workshops junto à OIM e a Cáritas do Paraná para oferecer essas e outras informações de qualidade aos imigrantes, seja sobre currículos, onde podem procurar emprego de forma segura, o mercado de trabalho no Brasil, como participar de uma entrevista de emprego, o que fazer nessa entrevista, ou ainda direcionar eles para algumas vagas de emprego que recebemos ou descobrimos. 

A nossa primeira ideia é atuar nesse lado, com os imigrantes, mas desenvolvemos também um trabalho com as empresas, porque a nossa ideia é conectar os dois. Uma curiosidade aqui, é que o nome ‘Connect’ vem disso, pois queremos ser uma ponte entre os imigrantes que estão buscando trabalho com as empresas que oferecem essas vagas. Com as empresas, buscamos primeiramente fazer parcerias para que acessem o nosso banco de talentos migrantes e que possam utilizá-lo como uma fonte de contratação, e também trabalhamos para conscientizá-las sobre a necessidade de incluir a diversidade migrante e cultural em seus ambientes de trabalho, para que possamos refletir a sociedade brasileira dentro dos ambientes de trabalho. Nós temos muitos imigrantes no Brasil, então porque não refletir isso dentro da cultura da empresa, dentro dos seus espaços? E ainda, um outro foco é conscientizar para além das empresas, mas também quem está ao nosso redor: os nossos alunos. O projeto é composto inteiramente por alunos de diferentes cursos da universidade, que muitas vezes não conhecem os desafios que a comunidade migrante enfrenta por aqui. Depois de preparados pela equipe de gestão, esses voluntários têm contato com os imigrantes e podem perceber com os próprios olhos esses desafios, e, assim, desenvolver habilidades e consciência crítica acerca do que acontece no mundo.

Quais são os maiores desafios enfrentados para alocar essas pessoas em um trabalho formal? A cooperação com a ACNUR afeta esse processo? 

Geovana Pellegrini: A maioria das dificuldades que enfrentamos parte da relutância das empresas na contratação de migrantes, que se traduziu, na nossa experiência, numa adesão das empresas ao Projeto muito menor do que imaginávamos. Quando criamos o projeto, acreditávamos muito que a nossa ideia do banco de talentos iria funcionar, ou seja, que as empresas iriam se conscientizar e prontamente fazer parceria com a gente, ainda mais pela temática da diversidade estar super em alta e o Projeto se apresentar como solução para isso, mas a realidade das coisas não é bem como a gente imagina. Nós conseguimos sim falar com muitas empresas, algumas grandes, principalmente porque começamos a atuação na pandemia, então os recrutadores tinham mais tempo para fazer reuniões no meet ou zoom. Apresentávamos a nossa proposta, que a empresa não precisaria pagar nada para participar do projeto, que existiria um banco de talentos de currículos à disposição dos nossos parceiros, e nesse momento todos adoravam o projeto e nos elogiavam. Mas, das mais de 50 empresas que conversamos, conseguimos converter 4 ou 5 em parceiros, sendo uma delas uma grande empresa. Por isso, ainda buscamos novas parceiras, mas isso não é mais o nosso foco. Ao entrar em uma reunião com a empresa, nós vamos com o pensamento de que, mesmo que ela não venha a ser parceira nossa, estamos colocando na cabeça do recrutador que existe a diversidade cultural e que ela precisa ser abordada – seja no curto prazo, ou seja mais adiante – esperando, assim, que a empresa algum dia se conscientize e traga a diversidade para dentro de si, de seus ambientes de trabalho, e isso já vale a pena.

E também em nossa experiência no projeto, percebemos outras dificuldades, como a falta de conscientização das empresas a respeito da documentação necessária para contratar um migrante. Para se ter uma ideia, muitas empresas impõem certas ressalvas, de que só podem contratar se o migrante tiver o CPF e RG, e até documentos que eles não conseguem ter a não ser que se naturalizem no Brasil, como título de eleitor e certificado de alistamento no exército. Também, nos momentos de conversa dos workshops que fazemos, muitos imigrantes já nos falaram que chegaram a ser negados em processos seletivos de uma empresa por não ter o RG, mesmo apresentando o RNE – o documento do imigrante aqui no Brasil e que deve ser aceito. Com isso, é nítido que falta um pouco de conscientização das empresas nesse sentido dos requisitos básicos. 

Outro ponto que impede muita gente de conseguir uma colocação é o desconhecimento de muitas empresas de até onde elas podem ir em uma contratação, diante das diferentes situações que os migrantes se encontram aqui – se podem, por exemplo, contratar uma pessoa sem residência permanente, com visto temporário, entre outras situações. E se a gente pensa pelo lado da empresa, é lógico que elas vão ter medo de contratar diante de tais incertezas, no receio de cometer algum equívoco e ter problemas trabalhistas, e nós entendemos que esse cuidado é sim necessário. Contudo, temos informações disponíveis para os recrutadores em diversos manuais que organizações como a OIM constróem, que devem ser compartilhadas e buscadas para viabilizar essas contratações.  

Ainda, há empresas que se mostram muito interessadas na causa por conta da publicidade que a inserção de migrantes e de diversidade nos seus espaços pode lhe trazer, mas aí quando se deparam com um candidato migrante, colocam condições que inviabilizam a sua contratação. Já vimos o caso de, por exemplo, só aceitarem contratá-los se falarem português como um brasileiro, e destaco aqui que estamos falando de uma exigência imposta à pessoas não têm o português como língua materna e que, muitas vezes, nunca tiveram o contato com a língua antes. Nós entendemos a necessidade da empresa em contratar alguém que entenda e consiga se comunicar em português, mas é preciso saber que a pessoa não vai ter um português perfeito, que poderá misturar algumas palavras em diferentes idiomas e que terá sotaque. Mas muitas empresas querem os imigrantes falando como brasileiros para não parecerem imigrantes. Assim, uma grande dificuldade reside no fato de que muitas empresas querem a diversidade mas não estarem dispostas à fazer as concessões que são necessárias, como contratar alguém que pode não falar perfeito porém é capaz de entender e se comunicar. 

Outra questão limitante é a do diploma. Tem algumas profissões, como Engenharia e Medicina, por exemplo, que sabemos da necessidade de ter a revalidação de diploma aqui no Brasil porque dependem de certificação em conselho regional para poder trabalhar. Mas tem algumas pessoas que são graduadas em cursos que não tem essa exigência, como no caso de Administração e Design, e que poderiam ter sua graduação reconhecida pelas empresas no processo de contratação, mesmo sem a revalidação do diploma. As empresas poderiam ter essa sensibilidade de compreender o caso de algumas situações em que o imigrante não conseguiu revalidar o diploma aqui, mas têm as habilidades necessárias para a vaga por ter cursado uma graduação no seu país de origem. O fato de exigir essa revalidação é limitante à contratação por ser um processo custoso e demorado, além de muitos não terem os documentos necessários porque a pessoa saiu do país fugida, perseguida ou teve que migrar por causa dos desastres naturais e acabou por perder tudo. Às vezes, a universidade nem existe mais, como no caso do Haiti, por causa dos terremotos, e não é capaz de enviar documentos exigidos na revalidação. Aqui, entendemos que muitas vezes falta a sensibilidade de fazer pequenas concessões. 

Sabendo dessas dificuldades, o nosso projeto tem se empenhado em desenvolver um trabalho de conscientização com os imigrantes e as empresas. E pensando na  cooperação com o ACNUR, para desenvolver nosso projeto e conseguir espaço com os recrutadores, nós comentamos o fato da universidade ter sido reconhecida com o selo da Cátedra por causa dos programas e medidas desenvolvidas para ajudar a comunidade migrante. Quando fazemos isso, querendo ou não, nós sentimos que a empresa olha para o Connect de uma outra perspectiva, por causa da publicidade que o nome do ACNUR pode trazer para sua empresa, mas também porque a organização internacional traz uma confiabilidade, indica que é um projeto sério. Então nos ajuda a conseguir nem que seja um espaço para que a empresa converse conosco remotamente e, aí, apresentamos ainda mais o projeto, conscientizamos e oferecemos a proposta de parceria. Nós também comentamos com os recrutadores sobre as nossas parcerias em rede, porque temos buscado atuar com todas as organizações possíveis de Curitiba que trabalham com a temática migrante. Isso é bem necessário porque os imigrantes precisam de muito apoio e cada organização tem sua contribuição, já que ninguém consegue abarcar tudo o que precisa ser feito, então precisamos somar esforços. Por isso estamos juntos, além da própria Cátedra, da OIM, da Cáritas, do Centro Estadual de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas. Então, na reunião nós mostramos aos recrutadores que atuamos em rede com essas organizações, mas eu acredito que o peso maior, aquele que nos dá mais apoio é o fato da universidade carregar o reconhecimento do ACNUR, com o selo da Cátedra.

Recorrentemente é noticiado que muitos migrantes se submetem a trabalhos análogos à escravidão e a outras condições de trabalho degradantes. Como as gestões públicas das localidades que recebem essas pessoas podem atuar para mitigar essas situações?

Geovana Pellegrini: Pensando até nas ações do projeto e no que temos como lema e vontade, acredito que a informação é um dos principais caminhos. Muitos imigrantes têm dúvida em relação ao currículo, à entrevista, à vaga de emprego, quais documentos precisam ter e onde obter eles. Há uma grande dificuldade do acesso à informação, e não é que eles não usem o google ou não procurem, mas acontece que a informação não está disponibilizada de forma fácil, onde eles precisam, ou em linguagem fácil. Para as gestões públicas conseguirem atenuar o problema dos trabalhos análogos à escravidão, acredito que elas precisam, como uma das estratégias, se engajar e entender onde os imigrantes vão procurar as informações e, assim, disponibilizá-las nesses locais. Além disso, nós podemos ir além dos meios mais tradicionais de comunicação e acessar esses migrantes através do mapeamento das comunidades de imigrantes e da conversa com seus líderes, porque eles são unidos e se comunicam entre si nos grupos de Whatsapp, então o poder público também pode se engajar, junto com a sociedade civil, e atuar nesse sentido.  

E conectando essa questão do acesso à informação ao enfrentamento ao trabalho em condições degradantes, é necessário que as gestões disseminem cada vez mais informações sobre os direitos trabalhistas dos migrantes também. Recentemente, tivemos o lançamento da cartilha trabalhista e, no evento de lançamento, uma das palestrantes comentou a respeito dos direitos trabalhistas dos imigrantes. Destaco aqui algo que ela falou e que me marcou muito, de que a nossa CLT não especifica se o trabalhador alvo das determinações é brasileiro ou migrante, ou seja, a lei não discrimina. Então quer dizer que qualquer pessoa pode estar coberta pela CLT e ter acesso aos direitos dela. O problema é que essa informação não é tão disseminada quanto deveria, às vezes nem a gente que nasceu aqui tem esse conhecimento, e muitos imigrantes entendem que a lei não serve para eles por não serem cidadãos brasileiros, então não veem problema em trabalhar e não receber nem o salário mínimo, férias, décimo terceiro, horas extras, adicional noturno, em condições insalubres e ilegais. Por isso, a gestão pública precisa concentrar esforços no compartilhamento desse conhecimento. 

Mas não basta só o imigrante saber o direito dele, outro ponto importante é conscientizar as empresas para que o empregador saiba o dever dele. Acontece que muitos aproveitam a desinformação do imigrante para explorá-lo, e se o imigrante têm informação e sabe dos seus direitos, nós podemos quebrar um pouco essa situação. E além disso, há empregadores que realmente não sabem o que fazer em relação aos direitos trabalhistas dos imigrantes e optam por não contratá-los, diminuindo os espaços de emprego formal onde essa população pode se colocar e levando muitos deles a aceitarem empregos em condições degradantes por terem pouquíssimas oportunidades fora disso. Todavia, com a gestão pública conscientizando as empresas de que elas podem contratar migrantes com documentação regularizada, podemos gerar também um movimento de mais empresas contratando migrantes, consequentemente aumentando os postos de emprego formais e a sua alocação mo mercado de trabalho formal e seguro, evitando assim que muitos desistam de ter um emprego seguro pela escassez de oportunidades e que enfrentem as condições de exploração. 

Phietra Laidens: Quando nos aproximamos da comunidade imigrante vemos que eles sofrem um choque cultural muito forte quando chegam ao Brasil, então ter um contato direto com eles nos dá uma facilidade de mostrar a eles qual é a outra realidade em que vivem para não se submeterem a condições de trabalho análogas à escravidão porque pode ocorrer de acreditarem ser uma diferença cultural. Então, acredito que com essa aproximação e conscientização direta da comunidade conseguiremos mudar essa questão.

Há muito despreparo no Brasil para lidar com o trabalho de migrantes? Quais são nossos principais gargalos e o que deveria ser feito?

Geovana Pellegrini: Há muitas dificuldades e despreparo em lidar com os migrantes no Brasil sim, em diversas partes da nossa sociedade. Às vezes, isso vem de cima, das autoridades por não saberem muito bem como acolher essas pessoas, dos problemas com a gestão pública, da corrupção, da burocracia, e até de pessoas acomodadas nos cargos públicos que não querem e, por vezes, freiam o avanço de pautas importantes para essa temática. Na parte das empresas, há recrutadores que são incríveis e tratam a questão da diversidade nas suas contratações, têm essa consciência de olhar para um processo seletivo sem viés, sem colocar os seus preconceitos e dar chances proporcionais às dificuldades de cada pessoa, mas, infelizmente, a gente sabe que tem recrutadores que não são preparados para isso, que desconsideram a questão da diversidade e as condições que ela traz – por exemplo, de que o imigrante não vai falar um português perfeito e não há problema nisso se ele consegue se comunicar e se fazer entender. Até mesmo, em alguns momentos, os recrutadores querem sim trazer essa pauta da diversidade para dentro da empresa, mas é o gestor, quem está por trás da vaga, não tem essa consciência. Nós enfrentamos essa barreira, nós tivemos contato com recrutadores que tiravam um hora do dia para nos ouvir, gostavam do projeto, davam espaço para gente, nos deram ideias e mandaram o projeto para outras empresas, mas na hora da decisão, a gestão sempre travava e colocava empecilhos muitas vezes banais.  

Nós entendemos também que há o preconceito por parte dos brasileiros, muitos pensam que os imigrantes estão roubando seus empregos e coisas desse tipo, só que não é verdade. Eles são seres humanos como nós, que somente estão querendo sobreviver e construir uma vida melhor, e que ocupam principalmente os postos de trabalho que nós não queremos, mas que são importantes para fazer nossa cidade funcionar, essa é a grande verdade. E sabemos que esse acúmulo de preconceito que os imigrantes recebem desde que chegam no país gera dificuldades porque mexe com o psicológico, traz insegurança e, muitas vezes, as pessoas não vão conseguir demonstrar suas melhores capacidades em uma entrevista com o medo de ser julgada, do preconceito que enfrentarão. Acredito e espero que ao longo do tempo as pessoas se conscientizem e entendam que não há necessidade de discriminar e passem a querer conhecer as pessoas, a cultura e aproveitem o que há de bom da pessoa vir para cá, facilitando a sua integração seja na esfera que for – documental, trabalhista, cultural ou social. Com isso, fazemos do Brasil, efetivamente, um povo acolhedor, não só para os que vêm dos Estados Unidos e da Europa. E à medida que a sociedade vai se conscientizando e se tornando politizada nesse sentido, a gente cria um ambiente saudável e propício para que os imigrantes entrem no mercado de trabalho, porque as pessoas passam a cobrar que as empresas tomem certas medidas e que tornem o mercado de trabalho mais inclusivo. Acredito que assim a gente consiga caminhar para um ambiente um pouco melhor na contratação, na convivência e no funcionamento da sociedade também.

Phietra Laidens: Temos dificuldade primeiro da pessoa conseguir se regularizar que, ao olharmos as leis aparente acontecer num estalar de dedos, mas na verdade é difícil de conseguir. Sabemos que se o Estado criar políticas públicas e informar as empresas sobre a preparação para receber imigrantes, haveria alguma mudança. Então, acho que falta, talvez, uma conexão evidente entre empresas, organizações que atuam ajudando os imigrantes e o governo, seja de qualquer nível, para que a gente consiga ter um ambiente melhor para essas pessoas conseguirem trabalhar.

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