Entrevista com Daphne Besen, Coordenadora de Programas do ONU-Habitat sobre projeto de cooperação técnica em Pernambuco

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Mestra em Ciências Sociais pela UERJ, Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ e Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou nos departamentos de Relações Internacionais da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias e foi pesquisadora do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). Desde 2017 trabalha no ONU-Habitat, onde hoje atua como Coordenadora de Programas de um projeto sobre prevenção à violência em parceria com o Governo do Estado de Pernambuco. Tem experiência profissional e acadêmica em sociologia urbana; cooperação internacional; governos locais; gênero e segurança urbana.

Como surgiu o projeto de prevenção à violência do ONU-Habitat no estado de Pernambuco?

O projeto “Cooperação Pernambuco: Prevenção, Cidadania e Segurança” é um projeto de cooperação técnica, criado para fortalecer a política de prevenção social ao crime e à violência do estado de Pernambuco. Tem foco na promoção de espaços urbanos de qualidade e integração da população mais vulnerável à violência. Desse projeto fazem parte o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC) e o Instituto Igarapé. É um estilo de projeto de multi-agências da ONU, idealizado em conjunto com a extinta (em 2023) Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e Drogas de Pernambuco (SPVD), agora parte da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança, Juventude e Prevenção à Violência e às Drogas. Em 2019, a Secretaria procurou o ONU-Habitat para uma conversa sobre os projetos e possibilidades de atuação no território de Pernambuco e, a partir daí, iniciamos o processo de desenho do projeto, seus principais temas, resultados e produtos e então, o formato de projeto que teria participação de outros parceiros.

A temática do projeto seria de prevenção à violência e às drogas, com metodologias que pudessem analisar esse tema no estado. Assim, como o ONU-Habitat tem a expertise em trabalhar com temas urbanos, a nossa participação no projeto ficou vinculada à violência urbana, com metodologias participativas para análise de espaços públicos, com o público-alvo de mulheres e jovens.

O ONU-Habitat trabalha por meio de transferência de recursos do parceiro, que nesse caso, é o Governo do Estado de Pernambuco, por meio da SPVD. A partir da aprovação do projeto pelo governo, existe uma estimativa de valor para cada produto, metodologia, e contratações estabelecidas no desenho do projeto. Além disso, o projeto passa por outras instâncias de aprovação na nossa sede global, em Nairóbi. Temos outros projetos hoje no Brasil em Alagoas, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Belo Horizonte e São Paulo, em que o desenho se deu de maneira similar: o governo estadual ou municipal ou alguma secretaria específica entra em contato com o ONU-Habitat e a partir daí iniciamos o desenho de projeto. Todos esses projetos são financiados pelos governos contratantes e o ONU-Habitat realiza a implementação do projeto de acordo com seu desenho e modalidades de contratação estabelecidas. Uma outra modalidade de projeto implementada pelo ONU-Habitat é quando o financiamento vem da nossa sede ou de algum fundo.

Nestes dois anos de cooperação técnica, como foi a experiência de coordenação de políticas com o governo e secretarias estaduais?

Nós desenhamos o projeto e selecionamos as metodologias a serem implementadas de acordo com a temática e necessidades do governo. Dessa forma, as metodologias implementadas pelo ONU-Habitat em Pernambuco foram demandadas pela Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas de Pernambuco para apoiar o trabalho já executado pela Secretaria. Em outras palavras, nosso principal trabalho ao longo dos projetos é poder produzir informações e dados para qualificar as políticas públicas do parceiro com evidências. Ao longo do desenvolvimento do projeto, alguns ajustes podem ser feitos a pedido do parceiro, desde que respeitando o orçamento e cronograma do projeto. O trabalho do ONU-Habitat é neutro e imparcial, o que garante que o nosso trabalho possa ser executado independente do posicionamento político do governo. Em Pernambuco passamos por uma mudança de governo durante a implementação do projeto e estamos no processo de avaliação da adaptação de alguns produtos para servir à nova gestão. Nós acreditamos que independentemente da gestão, os produtos já elaborados, o trabalho de campo e os dados qualitativos e quantitativos já reunidos podem ajudar nessa nova gestão, partindo da confiança nas informações produzidas por agências da ONU.

Como se deu a inclusão das minorias sociais na produção das políticas de segurança em Pernambuco?

Vou falar um pouco das duas metodologias participativas que aplicamos no projeto. A primeira delas é “Desenhos de Espaços Públicos”, uma metodologia dedicada a jovens interessados em propor melhorias de espaços públicos em suas comunidades. Nessa metodologia trabalhamos com jovens de 14 a 29 anos, quase todos vinculados à rede pública do estado e, durante dois dias de oficina, pensamos e analisamos soluções para um espaço público selecionado nas comunidades. Atuamos em um total de 10 comunidades espalhadas por 8 municípios. Isso porque nós acreditamos que grande parte da violência pode ser evitada caso tenhamos uma melhor infraestrutura e desenho urbano que, caso não sejam de qualidade, dão oportunidade ao crime e à violência. Então existem possíveis melhorias no cotidiano urbano, na circulação, mobilidade, infraestrutura etc. que podem diminuir a possibilidade de crimes nesses locais. Isso não quer dizer que o crime irá acabar se tivermos praças bem desenhadas, com árvores, bancos e equipamentos, mas acaba se tornando um espaço mais agradável, no qual as pessoas podem usufruir do seu direito à cidade e, consequentemente, acaba afastando o crime da região. O número de jovens meninos e meninas foi bem próximo e gostaríamos dessa equidade para termos resultados representativos. A seleção dos jovens foi feita pelas diretoras das escolas e tivemos uma participação total de 210 jovens nos 10 territórios trabalhados. Durante as oficinas também tivemos o apoio de organizações locais, da sociedade civil e coletivos.

A segunda metodologia participativa implementada se chama “Cidade Mulher”, adaptada das auditorias de segurança das mulheres, uma metodologia do ONU-Habitat criada para poder acessar, coletar e analisar relatos de mulheres sobre violência urbana nos territórios em que elas vivem. Acreditamos bastante que as mulheres que vivem nesses territórios são as melhores pessoas para falar sobre a situação daquele território. Conversando com mulheres, elas vão trazer os casos dos seus filhos, companheiros, companheiras, pais, idosos, ou seja, as mulheres dificilmente falarão apenas delas. Dessa forma, se a cidade for pensada para as mulheres, ela vai ser adaptada e vai alcançar praticamente todos os grupos, sendo eles minoritários ou não. 

Às vezes falamos sobre as mulheres como um grupo minoritário, quando na verdade as mulheres são metade da população mundial e as cidades ainda são pensadas para homens, ignorando as mulheres nesse processo. As necessidades das mulheres geralmente são mais complexas se comparadas a dos homens no dia a dia, pois elas circulam entre o trabalho, a casa e os cuidados com familiares, como levar filhos na escola, parentes ao médico/hospital, ir ao supermercado. Ou seja, existe toda uma complexidade de deslocamento e de circulação na cidade que normalmente não é incorporada no desenho das cidades. Se não levarmos isso em consideração, criam-se cidades com espaços públicos que não têm o básico para essa população, como, banheiros públicos em que mães possam trocar as fraldas de seus filhos, bancos nos quais as mães possam sentar enquanto os filhos brincam e possam amamentar, pontos de ônibus que sejam sombreados e seguros. Então, fazemos esse advocacy de que as mulheres (e mães!) deveriam ser o grupo focal a pensar em cidades e suas políticas públicas sociais, de desenvolvimento e de inclusão. 

Nessa metodologia, acessamos as informações das mulheres sobre os territórios por meio de algumas ferramentas participativas como caminhadas exploratórias, cartografia coletiva, questionário e rodas de conversa. Foram vários momentos nessas oficinas em que a gente pôde explorar o contato com as mulheres e elas puderam nos explicar em detalhes alguns desejos, o que acontecia na comunidade e o que poderia ser melhorado naquele território. Tivemos também a participação de mulheres trans, um grupo bastante vulnerabilizado e invisibilizado dentro do grupo mulheres. As questões das mulheres trans são diferentes das questões trazidas pelas mulheres cis. Por exemplo, para uma mulher cis é mais seguro andar na cidade durante o dia, mas para uma mulher trans à noite é mais seguro por circularem menos pessoas na rua, que é o espaço onde elas sofrem assédio e diversos outros tipos de violências. 

Essa metodologia nos confirma a necessidade de ouvir diferentes grupos incluindo não só gênero, mas também raça, etnia e faixa etária para que as cidades possam ser planejadas levando em considerações perspectivas de diferentes grupos e que, com isso, possam ser cidades mais inclusivas e integradas de fato. Como na primeira metodologia, para Cidade Mulher também tivemos a participação de ONGs, coletivos e organizações locais.

Cabe ressaltar também que se formos falar de violência letal nas cidades, as maiores vítimas são jovens negros. As mulheres não são as principais vítimas de violência letal ou do tráfico de drogas, por exemplo, mas elas sofrem outros diversos tipos de violência, e, quase sempre, essas mulheres têm alguma relação com as vítimas masculinas por serem esposas, mães, irmãs, filhas. Com isso, a observação das mulheres, seus relatos, histórias e causos, normalmente são bastante completos sobre a violência urbana no território. Acho importante salientar essa categorização e mostrar que, por mais que a mulher não seja a principal vítima de grande parte das violências letais na cidade ou do tráfico de drogas, ela é impactada e atravessada por essas violências de outras formas.

Qual o maior saldo e maiores dificuldades enfrentadas no projeto?

 A pandemia foi um grande desafio, mas conseguimos segurar um pouco para implementar as metodologias participas nos territórios de forma presencial. Trabalhar com o governo também exige uma adaptação para entender quais são os tempos políticos que são diferentes dos tempos da agência e, principalmente, com eleições durante o período de implementação do projeto. São algumas compreensões que precisamos fazer ao trabalhar com governos e se adaptar de forma sustentável para ambas as partes, sempre com o objetivo final de contribuir com dados e evidências que possam subsidiar as políticas públicas com qualidade. O trabalho em cooperação com outras agências e parceiros também exige atenção para que as demandas e pautas de cada parceiro sejam incluídas. E por fim, o trabalho no território em articulação com organizações locais exige um tempo de dedicação que muitas vezes não está previsto no desenho do projeto, mas que é necessário, pois precisamos de tempo para solidificar relações com confiança. O maior saldo do projeto são os resultados alcançados, tanto da implementação das duas metodologias participativas em 10 diferentes territórios quanto da sua sistematização de informações que tem por objetivo final qualificar as políticas públicas de prevenção à violência. Além disso, no processo de implementação das duas metodologias tivemos muitas histórias de jovens e mulheres que se engajaram nas temáticas, aprenderam no processo, contribuíram e têm hoje novas visões para e sobre suas comunidades. Nosso maior desejo é que a vida dessas pessoas possa ser melhorada com apoio desse trabalho realizado nos últimos anos. 

Vimos que metodologias participativas de segurança urbana e gênero aplicadas no projeto em Pernambuco foram implementadas previamente em Alagoas. Como foi feita essa adaptação de realidades e expertise nos em diferentes estados do Nordeste?

O ONU-Habitat possui uma cartela com diversas metodologias que podem ser aplicadas a diferentes contextos e para cada projeto vamos indicar metodologias específicas dependendo do objetivo e do tema. Em Pernambuco, as metodologias escolhidas foram voltadas para a prevenção da violência e de identificação e conhecimento do território sobre esses temas. Enquanto em Alagoas, no projeto que teve início em 2017, os temas são diversos como assentamentos informais, mapeamento, dados, habitação, infraestrutura urbana, segurança, juventude e abarca o estado como todo, todas as secretarias estaduais. Foi um projeto desenhado para o governo do estado inicialmente ter mais informações sobre o território e sua população e com as entregas dos produtos e fases do projeto, o acordo com o governo foi sendo renovado e ainda estamos com o projeto por lá, em um momento diferente hoje.

O ONU-Habitat tem suas metodologias de origem da sede internacional em Nairóbi e as metodologias adaptadas pelas equipes de projeto para serem implementadas localmente. Nesse último caso, metodologias implementadas em um projeto podem ser replicadas em outro, em uma outra localidade, desde que adaptados para a realidade local e seu cronograma e orçamento. Essa replicação de metodologias é bastante interessante porque nos dá a possibilidade de estar sempre aprimorando e podendo comparar resultados entre cidades/estados.     

Para finalizar, poderia nos explicar um pouco em qual etapa está o projeto?

 Agora estamos na etapa de devolutivas das oficinas realizadas. De apresentar os resultados e validá-los, divulgar os produtos com o governo e parceiros, explicar como utilizar os dados que foram coletados e elaborados para então poder apoiar as políticas públicas de prevenção à violência. Estamos também nos dedicando a interpretar e analisar tudo que foi produzido para criar narrativas de difusão dessas informações, de forma que alcance não só o governo como também a sociedade civil, academia e pessoas interessadas nas temáticas. Nosso principal objetivo é que esses resultados possam ser utilizados para pensar e qualificar políticas inclusivas nas cidades de Pernambuco.

Para mais informações sobre o ONU-Habitat:

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