A complexidade dos desafios ambientais globais evidenciou a necessidade da adaptação da governança ambiental internacional, com a inclusão de diferentes níveis no processo de tomada de decisão. A atuação de governos locais e outros atores descentralizados tem ganhado destaque nesse cenário. Essas instâncias vêm contribuindo com soluções inovadoras e aproximando a cooperação internacional das realidades locais. Em um mundo marcado por interdependências e impactos ambientais que atravessam fronteiras, torna-se cada vez mais evidente que os Estados nacionais não são os únicos protagonistas na formulação de respostas efetivas à crise climática.
A paradiplomacia ambiental – isto é, a atuação internacional de entes subnacionais – permite que cidades, estados e regiões compartilhem experiências, firmem parcerias e participem de fóruns globais, contribuindo com perspectivas locais para os debates internacionais. Esse movimento não apenas amplia o alcance da cooperação, mas também fortalece a capacidade de implementação de políticas ambientais mais adequadas às realidades regionais. Para entender um pouco melhor sobre essa tendência, o IDEF entrevistou a advogada e professora Cristiane Elias de Campo Pinto.
Doutora em Direito Ambiental Internacional pela UNISANTOS (2018). Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos (2013). Possui graduação em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos (1996), Pós-Graduação na Universidade Católica de Santos (1998) e Especialização em Direito Registral e Imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte- MG (2007). Extensão em Direitos Reais e Sistemas Registrais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em Portugal. Extensão em Falência e Recuperação deEmpresas pela FGV. Atualmente é professora de graduação e do MBA da ESAMC – Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação onde leciona as Disciplinas de Direito Empresarial, Direito Civil e Direito Processual Civil, Universidade Paulista de SANTOS (UNIP) onde leciona as Disciplinas de Teoria Geral do Estado e Procedimentos Especiais e Fatec Praia Grande onde leciona Fundamentos do Direito e Direito Internacional. É advogada com experiência nas áreas do Direito Empresarial, Direito do Trabalho e Civil desde 1997. Conciliadora habilitada pela Escola Paulista da Magistratura (2012)
IDeF: As suas pesquisas e publicações focam em temas como paradiplomacia e questões ambientais globais. O nosso observatório também está voltado para o tema da paradiplomacia, que discutimos a partir da cooperação internacional descentralizada. Poderia começar contando um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e como se envolveu com essa temática?
Cristiane: A minha trajetória nessa temática começa em 2011, no âmbito dos meus estudos do mestrado em direito ambiental. Naquela ocasião, o foco inicial das minhas pesquisas era relacionado ao planejamento urbano, ou seja, no contexto das cidades, como o Direito resolve as temáticas sobre planejamento urbano com foco na organização dos territórios. A princípio, o tema da Paradiplomacia não aparece, porque era um estudo mais local. Nessa medida, eu acentuo esses estudos, sempre dentro do planejamento urbano – que era o tema guarda-chuva – e, para trazer mais detalhamento, abordo o estudo de impacto de vizinhança, através de um projeto que estava sendo construído na cidade de Santos, cidade em que realizei minhas pesquisas. Finalizo o mestrado falando de uma ferramenta do planejamento urbano, como uma importante perspectiva para o desenvolvimento sustentável. A partir disso, amplio a abrangência dos temas de pesquisa no doutorado em direito ambiental internacional, especialmente para considerar um ponto básico, que é o fato de os problemas ambientais não possuírem limites territoriais, não sendo possível restringir um problema ambiental a uma área e resolvê-lo. Considerando a premissa de que a questão ambiental é global, começo a pesquisar, quais seriam as ferramentas e de que maneira os municípios brasileiros estariam atuando na esfera internacional. A paradiplomacia aparece de forma reflexa, uma espécie de caminho ou solução para o tópico ambiental, então, faço um levantamento de casos brasileiros em que a atuação paradiplomática acontece, e a partir daí faço um levantamento dos principais atores subnacionais que atuam nessa esfera estabelecendo acordos de cooperação internacional. Assim, abordo as principais questões relacionadas à paradiplomacia, inclusive sobre a legitimidade desses atores para tal prática.
IDeF: A partir das suas pesquisas e percepção sobre o assunto, como os governos subnacionais podem contribuir para a resolução de problemas globais (principalmente os problemas ambientais, como as mudanças climáticas e a poluição – que é o tema da nossa edição atual)? Não haveria limitações para esses governos locais se inserirem em uma governança ambiental em razão dos níveis de poder acima deles?
Cristiane: A vida acontece nas cidades, e por essa razão, os problemas também. Se fizermos uma retrospectiva das últimas catástrofes ambientais em território nacional, podemos observar o quão relevante pode ser a atuação dos municípios na busca por soluções para os grandes desafios da ordem urbana para além do status quo. A questão da proximidade com o problema permite aos atores subnacionais uma margem de atuação muito mais importante do que outros atores. Se pensarmos na nossa divisão federativa, quem mais poderia entender as complexidades locais senão o próprio município? Então, os municípios, em particular, têm um papel preponderante na elaboração de pesquisas e políticas ambientais públicas, tendentes ao combate dessas grandes tragédias. Um exemplo dessa perspectiva é o caso do município de Porto Alegre – que, em particular, é um grande protagonista da paradiplomacia no Brasil, ao lado de São Paulo e Curitiba –, já revisou dezenas de acordos e parcerias de cooperação internacional, e não obstante essa atuação, se mostrou totalmente despreparado para o enfrentamento de uma questão relacionada ao clima. Não é mais possível mantermos a fala tradicional de “nunca antes choveu em tal município como choveu agora”, “nunca antes tivemos uma seca tão grande”, ora, essa é uma fala que teria lugar há trinta, vinte ou dez anos atrás, mas essa emergência climática global é, repetidas vezes, mencionada no âmbito do cotidiano de qualquer um de nós, e sabemos que esses agentes têm um papel decisivo nessas políticas públicas, em especial as que tratam do desenvolvimento urbano. Como vamos ocupar nosso território de modo a mitigar essas grandes catástrofes? Se eu sei que meu município está localizado em uma região onde uma grande precipitação de chuvas pode causar um impacto muito grande, preciso me preparar. Nesse caso os especialistas apontaram que a cidade de Porto Alegre sofria de problemas estruturais em seus equipamentos de contenção, ou seja, a tragédia seria mitigada se as ações concernentes ao desenvolvimento regular do solo urbano tivessem sido efetivamente capitaneadas pelos agentes locais, e não foram. Poderíamos também citar a capital paulista, outra protagonista, outro ator subnacional muito importante para o cenário brasileiro, o primeiro a criar uma secretaria de relações internacionais, justamente para fomentar os acordos de cooperação internacional que a cidade de São Paulo possui.
Mas, como contribuir? Atuando nos limites do artigo 30 da Constituição, dentro de sua esfera de competência, estabelecendo relações de cooperação internacional que tanto contribuíram para o desenvolvimento de várias regiões. Vale salientar que, mesmo diante da inexistência de competência legislativa para a atuação no âmbito internacional, está já acontece desde a década de 90, os mesmos entes subnacionais já atuam no cenário internacional, estabelecendo diversos acordos para cooperação técnica com Estados estrangeiros, sem nenhum tipo de resistência ou questionamento, isso não é um problema para o caso brasileiro. Ainda que não haja uma competência definida pela lei, as interações com o exterior pelos órgãos subnacionais já acontecem sem ressalvas.
IDeF: Sobre o direito ambiental global de forma geral, quais instituições ou países (grupo de países) têm se destacado e avançado nessa pauta ambiental? Há países em que os governos subnacionais têm sido mais ativos? Como se caracteriza a realidade brasileira?
Cristiane: Historicamente, temos um grupo de países que se destacam na temática ambiental, o Reino Unido é um deles, existe uma política pública referente à descarbonização, ao lado dele, a Suécia, em que o principal pilar ambiental é voltado ao uso de energias renováveis; temos Singapura; outro caso em que o Estado investe pesadamente em energias renováveis é a Noruega, que ao lado da Alemanha, faz parte de um fundo investidor na Amazônia. O Brasil, em termos formais, tem uma legislação ambiental impecável, do mesmo modo que detém um extenso grupo de renomados pesquisadores. É claro que existem questões discutidas na cena internacional que interferem na dinâmica de desenvolvimento de políticas ambientais. Como importante player no cenário internacional, o Brasil sofreu um grande retrocesso na gestão Bolsonaro na maior parte dos temas da política ambiental e reconstruir essa imagem leva tempo.
IDeF: Quais políticas públicas e ações de âmbito global têm sido mais eficientes na mitigação dos danos ambientais? Quais dessas ações têm sido mais factíveis para os governos subnacionais implementarem de forma eficaz?
Cristiane: No âmbito local, “o que mais funciona” é a política de desenvolvimento urbano e ela se faz através de uma ferramenta muito importante, que é o plano diretor, então, normalmente, as principais questões que discutem as cidades no Brasil, são as discussões dos planos diretores, que é onde observamos a maior participação popular. O reflexo dessa participação é percebido nas discussões para aprovação dos planos diretores. Nesse aspectome recordo, das pesquisas realizadas no âmbito da cidade de Santos, em que eu destacava a importância da atuação em redes de cidades. Santos, por muito tempo, integrou uma rede de cidades portuárias, que é o foco do município, sua principal atividade econômica. Por muitos anos, a contribuição de Santos para essa rede foi excepcional. O fato é que, em 2021, alegando dificuldade financeira, dada pela pandemia, o município sai dessa rede portuária e, consequentemente, deixa de ser protagonista. E no mínimo curioso o fato de um município com tamanho orçamento não pudesse arcar com o ínfimo custeio de sua participação em rede. Essa atuação em redes é importantíssima, assim como os acordos estabelecidos por conta da atuação direta dos estados subnacionais.
IDeF: Trazendo essas reflexões mais para o âmbito social, por vezes os discursos e pautas de governança internacional, em especial do âmbito ambiental, ficam um pouco distantes da sociedade civil. A paradiplomacia aproxima a sociedade dessa pauta? Os indivíduos que vivem nessas cidades conseguem enxergar os benefícios de uma cooperação internacional da prefeitura?
Cristiane: Geralmente essa correlação não é feita, é uma questão importante, todavia esse tema não está na pauta do debate público. As questões relacionadas à cooperação internacional das prefeituras ficam mais distantes, restritas a um grupo de pessoas, normalmente agentes públicos e pesquisadores. Então, salvo engano, não acho um tema pautado à sociedade civil, pelo contrário, ignora-se a circunstância de que os municípios, diretamente, podem buscar parcerias e recursos para desenvolvimento de políticas locais. Normalmente, a discussão que se coloca na sociedade é: o que o município vai fazer, com seus próprios recursos, para resolver os problemas locais, ou o que o governo central vai estabelecer como diretriz para que os municípios possam empreender.
IDeF: Para concluir, quais os principais riscos e desafios que os governos subnacionais podem ter de enfrentar ao exercerem a paradiplomacia ambiental? Os governos brasileiros estão suficientemente preparados e conscientes dos benefícios da paradiplomacia?
Cristiane: Em meu doutorado, fiz um levantamento sobre os principais municípios brasileiros que têm atuação paradiplomática. O primeiro ponto a ser considerado é o fato de haver, na estrutura da municipalidade, uma secretaria de relações internacionais. O outro fato que deriva dessa constatação é que, o município com esse tipo de atuação tenha orçamento financeiro relevante. É fundamental pensar que se um ator subnacional pretender esse tipo de ação tenha orçamento e material humano capacitado, corpo técnico habilitado para estabelecer essas tratativas e protagonismo. A partir disso, é preciso buscar soluções outras, que não passem, necessariamente, pelos subsídios ou investimento do governo central, que consiga fazer os entes subnacionais avançarem em uma agenda paradiplomática. Dessa maneira, é possível dizer que a atuação paradiplomática brasileira é relevante, mas ainda pequena, considerando o total de municípios. Muitas cidades brasileiras poderiam atuar paradiplomaticamente e não o fazem.
Sobre o risco da paradiplomacia, não estou certa se existe um risco no exercício paradiplomático. A pior consequência ao estabelecer um acordo internacional é a negativa do acordo, o que não me parece um risco, que deva ser calculado. O município pode buscar uma participação internacional e não conseguir por falta de preparo, o que é uma consequência da sua falta de estruturação. Em relação aos desafios, é o mesmo norte: organização interna, ter uma decisão política que passe pela necessidade de buscar cooperação internacional sabendo que não há recurso em nenhum orçamento para atender a todos esses inúmeros eventos, especialmente de ordem ambiental que estão sendo enfrentados há décadas. Uma saída importante e mais efetiva por parte dos municípios é a busca por cooperação internacional, seja para investimento, seja para acordo de parceria técnica para soluções práticas. Não há recurso para tudo, mas há soluções que podem ser buscadas.