De acordo com o CENSO 2022, 87% da população brasileira reside, atualmente, em áreas urbanas. Com o crescimento acelerado das cidades e o aumento populacional, a mobilidade urbana, definida como capacidade de as pessoas se deslocarem eficientemente no espaço urbano, de maneira tanto individual como coletiva, tem se tornado cada vez mais difícil. Esse é um problema que não é exclusivo do Brasil, mas compartilhado por diversos países, configurando-se como um dos principais desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas. A ausência de infraestrutura adequada e a falta de planejamento estratégico comprometem essa mobilidade, impactando de maneira significativa a qualidade de vida da população.
Um exemplo disso é o expressivo aumento do número de veículos particulares. Entre os principais impactos negativos da crescente circulação de veículos, destaca-se o aumento da poluição do ar, causada, sobretudo, pela queima de combustíveis fósseis dos veículos automotores, visto que o transporte individual emite 40 vezes mais gases poluentes que o transporte coletivo para transportar o mesmo número de pessoas (ANP, 2010). A poluição atmosférica é responsável por 14 mortes a cada 100 mil habitantes, e 92% da população mundial vive em áreas onde os níveis de poluição ultrapassam os limites seguros. No Brasil, 44% dessas mortes decorrem de doenças cardiovasculares, respiratórias, cânceres, diabetes e complicações associadas ao sedentarismo e ao sobrepeso (OMS, 2014). Além da poluição do ar, o ruído urbano, provocado por buzinas, motores e o acúmulo de veículos nos horários de pico, também prejudica a saúde, causando estresse, distúrbios do sono, problemas auditivos eafetando negativamente o bem-estar da população.
Diante disso, em uma perspectiva mais ampla, a mobilidade urbana se revela um fator transversal a todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecendo uma conexão direta entre transporte, saúde e meio ambiente. Exemplos dessa relação incluem:
● ODS 3 – Saúde e Bem-Estar
○ Uma das metas para 2030 é reduzir substancialmente o número de mortes e doenças associadas a produtos químicos perigosos e à poluição do ar, da água e do solo. A redução da poluição atmosférica provocada pelos veículos automotores é, então, fundamental. Incentivar a transição para uma matriz energética mais limpa, melhorar a qualidade dos combustíveis, controlarrigorosamente as emissões e promover o transporte ativo, como a utilização de bicicletas e o deslocamento a pé, contribui diretamente para a melhoria da saúde pública, reduzindo a incidência de doenças respiratórias, cardiovasculares e outros problemas associados à poluição.
● ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis
○ Outra meta é proporcionar o acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos, melhorando a segurança rodoviária por meio da expansão dos transportes públicos. Ao expandir e qualificar o transporte coletivo, diminui-se a quantidade de veículos particulares em circulação, o que reduz significativamente a emissão de poluentes atmosféricos, resultando em uma melhor qualidade do ar nas cidades, tornando-as mais saudáveis, resilientes e ambientalmente equilibradas.
● ODS 13 – Combate às Alterações Climáticas
○ Entre as metas, também está a integração de medidas de enfrentamento às mudanças climáticas nas políticas e planejamentos nacionais. A expansão do transporte coletivo sustentável e o incentivo ao uso de fontes de energia limpa reduzem a emissão de gases de efeito estufa, que são os principais responsáveis pelo aquecimento global. Investir em sistemas de transporte menos poluentes, como veículos elétricos, ciclovias e corredores exclusivos de ônibus, além de integrar políticas de mobilidade urbana aos planos de ação climática, contribui para mitigar os impactos das mudanças climáticas e promover o desenvolvimento urbano de maneira mais sustentável.
Em face dessas interconexões, a necessidade de políticas públicas eficazes que abordem a mobilidade urbana de maneira integrada e sustentável torna-se ainda mais urgente. Embora o Brasil possua programas nacionais voltados à mobilidade urbana, as ações locais são essenciais, pois as realidades urbanas variam significativamente entre as cidades. Uma das alternativas mais debatidas é a adoção do pedágio urbano, que vem sendo implementada em várias metrópoles ao redor do mundo como estratégia para reduzir congestionamentos, emissões de carbono e desigualdades no acesso à mobilidade.
Nos Estados Unidos, onde o carro é um símbolo de liberdade individual, medidas como pedágios urbanos e zonas de baixa emissão frequentemente são rotuladas por setores conservadores como parte de uma “guerra contra os carros”. Um exemplo emblemático ocorreu em 2017, quando um influente youtuber americano criticou duramente novas regras de emissões, interpretando-as como um ataque ao estilo de vida dos cidadãos. Essa resistência, porém, não é exclusiva dos Estados Unidos. Londres enfrentou fortes protestos na década de 2000 ao instituir seu pedágio urbano e, mais recentemente, com a expansão da Zona de Emissões Ultrabaixas (Ulez), que chegou a ser alvo de atos de vandalismo. Em Paris, as restrições ao uso de veículos a gasolina e os investimentos em infraestrutura cicloviária também geraram críticas. Já em Estocolmo, a implementação do pedágio urbano precisou ser submetida a referendo após uma recepção inicial apenas moderadamente favorável.
O padrão que se repete em diversas cidades é o da rejeição inicial seguida de aceitação. Especialistas, como o professor Philip Goodwin, explicam esse ciclo por meio da chamada “curva de Goodwin”, segundo a qual o apoio público cai ao se anunciar as medidas, mas cresce após a implementação, quando os benefícios se tornam visíveis. Diante disso, os resultados positivos dessas políticas têm se tornado mais evidentes. Nova York, por exemplo, inaugurou seu primeiro pedágio urbano em 2025, com a expectativa de reduzir em 20% o tráfego no centro de Manhattan e arrecadar fundos para revitalizar o sistema de metrô. A governadora Kathy Hochul justificou a medida como uma resposta necessária a um problema de saúde pública e a um desperdício econômico, já que os congestionamentos causam prejuízos estimados em US$20 bilhões anuais. Ademais, experiências em cidades como Ljubljana e Guildford mostram que, ao contrário do que muitos temiam, as zonas livres de carros revitalizaram os centros urbanos e aumentaram o fluxo de consumidores.
Contudo, para que políticas como o pedágio urbano sejam bem-sucedidas, é fundamental que sejam acompanhadas de alternativas viáveis de transporte e de uma comunicação pública eficaz. Paris, por exemplo, ofereceu subsídios para quem trocasse veículos poluentes por opções limpas. Londres investiu os recursos arrecadados em melhorias do transporte público, e Nova York segue estratégia semelhante, incluindo tarifas variáveis e subsídios para comunidades vulneráveis. Mesmo assim, resistências persistem, especialmente quando as medidas são vistas como punitivas ou injustas. O grande desafio é garantir que o pedágio urbano não seja apenas uma nova fonte de arrecadação, mas sim um instrumento de promoção da justiça social e da sustentabilidade.
No Brasil, onde grandes centros urbanos enfrentam sérios problemas de mobilidade, desigualdade e poluição, a ideia do pedágio urbano ainda é cercada de polêmicas. No entanto, as experiências internacionais mostram que, com planejamento adequado, diálogo aberto e foco na equidade social, é possível transformar nossas cidades em espaços mais justos, sustentáveis e acessíveis para todos
Diante da crescente complexidade da mobilidade urbana no país, as administrações municipais podem recorrer a linhas de crédito oferecidas por instituições multilaterais de desenvolvimento, como a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial. Um exemplo concreto é o financiamento de € 55,5 milhões (aproximadamente R$ 340 milhões), firmado em outubro de 2024 entre a AFD e a Prefeitura de João Pessoa. O projeto contempla a implantação de dois corredores de Bus Rapid Service (BRS), com 36 km de extensão, integrando ciclovias, melhorias de calçadas e a reestruturação da rede de ônibus no centro histórico, beneficiando cerca de 550 mil deslocamentos diários e promovendo a mobilidade de baixo carbono.
No âmbito nacional, destaca-se a Chamada de Projetos de Mobilidade Urbana Sustentável, lançada em março de 2021 pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em parceria com o Banco de Desenvolvimento Alemão (KfW), o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e o BID. A iniciativa selecionou pelo menos cinco projetos para estudos de pré-viabilidade em soluções sustentáveis, como aquisição de ônibus elétricos, implementação de corredores BRT, sistemas de VLT e expansão da infraestrutura cicloviária em cidades como Curitiba, Guarulhos, Fortaleza, Recife e Salvador.
Para garantir a captação e a execução bem-sucedida desses recursos, é fundamental que as propostas apresentadas pelos municípios sejam tecnicamente consistentes, com objetivos claros, indicadores mensuráveis de acesso, redução de tempo de viagem e diminuição de emissões de carbono. Além disso, devem incorporar mecanismos efetivos de participação social. Conforme orientam as Diretrizes Internacionais para Planejamento Urbano e Territorial do UN-Habitat, processos participativos e avaliações integradas de impacto socioambiental são elementos essenciais para o desenvolvimento de projetos urbanos sustentáveis e inclusivos, aumentando significativamente as chances de aprovação e de sucesso das iniciativas.

