Martha Martorelli é Assessora na Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), no estado de São Paulo. Foi Analista de Infraestrutura da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades. É especialista em Gestão Pública e Meio Ambiente. Foi presidente da Associação Nacional de Analistas e Especialistas em Infraestrutura – Aneinfra. Criadora do blog Cidade Cidadão.
A senhora construiu uma trajetória profissional relevante na área de infraestrutura e mobilidade urbana. Percorrendo os municípios, acompanhando projetos, capacitando e informando gestores locais. Com tanta experiência, a Senhora poderia nos dizer quais têm sido os maiores desafios para termos uma mobilidade sustentável nas cidades?
Martha: São muitos desafios. Eu cito como o maior deles e, talvez a origem de muitos outros, a falta de uma cultura nacional de planejamento, de forma geral, e principalmente, a ausência de uma visão de planejamento, do poder público, para além das gestões. É comum que os projetos sejam pensados para o período de um mandato, e a mobilidade urbana carece de uma construção contínua de cidade, que é dinâmica, com espaços urbanos com demanda crescente de infraestrutura e serviços, daí a importância de um plano.
A senhora conta um pouco no seu Blog (Cidade Cidadão) que o ano de 2010 foi decisivo para a mobilidade urbana no país em razão do planejamento federal para receber a Copa do Mundo de 2014. Houve investimentos e financiamentos proporcionados pelo Governo e também a criação da Lei da Mobilidade. No entanto, ao mesmo tempo em que houve esse otimismo, houve também uma repercussão negativa, durante a preparação para a Copa e também após o evento, como obras inacabadas ou ociosas. Hoje, após quase 5 anos de Copa do Mundo, que balanço a senhora faz sobre os resultados dos investimentos na área da mobilidade? Esses investimentos robustos do Governo Federal continuaram? As cidades têm de fato motivos para comemorarem?
Martha: Por uma série de fatores, a Copa 2014 representou a perda de uma grande oportunidade de melhorar a mobilidade urbana, de forma contundente, em todo o país. Não por acaso, naquele momento não havia uma sensibilização da população e do poder público para as questões relevantes da mobilidade urbana. O foco era apenas construir obras, com projetos pouco estruturados e planejamento integrado inexistente. A consciência de que esse não era o caminho só começou a ser propagada a partir de 2012, com a publicação da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587).
O que se avalia como sendo um grande legado da Copa no Brasil, foi o fato de que, a partir daí, programas federais de investimentos relevantes, na mobilidade urbana, foram instituídos, com recursos vultosos, principalmente, em transporte público. A seleção e contratação de projetos para a Copa deram início a uma nova era de programas de investimentos do Governo Federal, por meio da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades. Note-se que, dentre esses ganhos, não se inclui a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que começou a ser construída, efetivamente, em 2003, com a criação do Ministério das Cidades, incluindo projetos de lei editados desde 1995.
Nós sabemos que muitas cidades no Brasil buscam recursos fora do país para executarem obras de infraestrutura e melhorarem a mobilidade urbana. Esse é um caminho viável para os nossos municípios? A cooperação internacional poderia ser uma boa prática de governança na área de mobilidade urbana.
Martha: O Brasil desperta grande interesse internacional, principalmente por dois motivos: por sua grande população, a maior da América Latina, o que se traduz num grande mercado consumidor, e pela imensa disponibilidade de recursos naturais, o que representa grande oferta dos bens mais importantes para a sobrevivência no planeta: água e fontes de energias renováveis. Além disso, a diversidade de nossas cidades faz com que qualquer projeto local tenha grande potencial de ser replicado em outras cidades do mundo. Projetos de cooperação internacional oferecem às cidades a oportunidade de aprender com países que já têm grande experiência em novas tecnologias, tradição em planejamento, estudos e pesquisas mais desenvolvidos sobre temas que envolvem a vida nas cidades.
A diversidade de nossas cidades faz com que qualquer projeto local tenha grande potencial de ser replicado em outras cidades do mundo.
É uma troca saudável e produtiva, desde que as cidades tenham clareza quanto às suas necessidades e expectativas, para que o acordo atenda seus anseios e realmente trate de sua realidade. O risco dessas parcerias é sempre que o parceiro internacional, geralmente mais estruturado e pragmático, proponha algo que não esteja exatamente no escopo da gestão local e a cidade, por falta de preparação para aquela cooperação, aceite executar um projeto que demonstre não ser prioritário.
Nós estamos acompanhando as tendências mundiais pela busca de cidades inteligentes e sustentáveis? As nossas cidades se interessam e se esforçam para promover essas mudanças urbanas?
Martha: São inegáveis as diferenças que existem entre as cidades brasileiras, sob todos os pontos de vista. O que se observa é que cidades que possuem grande complexidade na circulação de pessoas, em geral as mais populosas, ao sentirem a necessidade de melhorar a mobilidade urbana, buscam mais informações e acabam promovendo mudanças significativas, fruto de uma necessidade premente. Cidades que têm universidades proativas, com pessoas propositivas e que interagem com a sociedade e população local, também tendem a ser despertadas para uma visão mais contemporânea e sustentável de espaço urbano.
De uma forma geral, ainda falta muito para que a maioria das cidades brasileiras tenha consciência de que, o modelo que vinha sendo construído, precisa ser repensado. De uma forma geral, ainda falta muito para que a maioria das cidades brasileiras tenha consciência de que, o modelo que vinha sendo construído, precisa ser repensado.
Tendo em vista a realidade urbana das cidades brasileiras e as dificuldades enfrentadas pela maioria delas, que conselho você daria para um prefeito ou gestor local?
Martha: Daria algumas sugestões, ainda que umas possam parecer óbvias:
Governe para sua população. Mas não só para a população que o elegeu, ou para aqueles grupos com os quais mais convive. Faça a gestão para todos, de forma igualitária, preservando o espaço de todos e atendendo às necessidades de cada um.
Informe a população. Dissemine suas ações e propostas, realize oficinas, seminários e encontros, e esteja sempre disposto a ouvir. A sociedade civil tem um histórico de embate com o poder público e o poder público tem muita reserva ao correr o risco de ser criticado de forma agressiva. Rompa esse círculo vicioso estabelecendo parcerias com pessoas e grupos representativos e diversos.
Planeje para além do seu mandato. O Brasil carece de gestores com visão de Estado. Pense que, ao inaugurar uma obra, há um objeto que simboliza sua realização, mas que ao fazer planejamento de forma participativa e visando uma cidade melhor para o futuro, o mérito será mais perene e, provavelmente, mais reconhecido no longo prazo.
Acima de tudo perceba que o mundo mudou, as relações mudaram, as cidades mudam e as necessidades da população são crescentes para atender à demanda da atualidade. Seja sensível a tudo isso e aberto a adaptações construtivas.
Estabeleça parcerias com entidades confiáveis de planejamento urbano, com universidades, com empresas, com países, com outras cidades e com outras esferas da federação. As cooperações multiplicam recursos, agregam conhecimento à equipe local, promovem oportunidades de contato com outras realidades e apoiam a execução de seu programa de governo. No entanto, nunca perca de vista o que espera de cada um dos parceiros. Apresente sempre seus projetos e suas necessidades para estabelecer tais parcerias e avalie o esforço da contrapartida que pode oferecer.
Por último, priorize calçadas e infraestrutura para pedestres. Sempre!