“A Paraíba e o Mais Médicos” por Daniela Prandi

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O SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO

“Um dos mais ousados e grandiosos projetos políticos do Brasil”. Com essas palavras, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se referia ao Sistema Único de Saúde (SUS) no ano de 2006, durante fala no 11º Congresso Mundial da Saúde, realizado na cidade do Rio de Janeiro. Concebido como uma obrigação da União e amparado no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, o Direito à Saúde pode ser entendido como o substrato principal que justifica a criação e manutenção do SUS, considerado, por sua vez, o maior sistema público de saúde do mundo em termos de cobertura espacial e populacional.

Uma das particularidades da organização do SUS é seu modelo de intervenção e gestão pautado na Atenção Primária à Saúde (APS). A APS consiste em uma abordagem operacional e organizativa que se estrutura em uma percepção holística dos problemas de saúde de uma dada população, percebendo-os como processos complexos que respondem a fatores sociais e psicológicos, além de agravos médicos específicos.

Imagem do livro “Mais Médicos”, de Araquém Alcântara.

É no escopo de práticas da APS que podem ser resolvidos até 80% dos problemas de saúde de uma determinada população

É no âmbito da APS que se propõe um cuidado integralizado, amparado em uma abordagem sistêmica e continuada que trate e oriente a população de modo a garantir o máximo de resultados possíveis, ainda no primeiro estágio de contato com o sistema nacional de saúde. Nesse sentido, é no escopo de práticas da APS que podem ser resolvidos até 80% dos problemas de saúde de uma determinada população, o que torna, em termos mais gerais, a orientação de um sistema por meio da APS um complexo de cuidado e gestão mais eficiente e econômico.

Em tal modelo, a combinação de disponibilidade e distribuição adequadas de profissionais de saúde pode ser vista como a espinha dorsal de todo o sistema. Considerando a magnitude da proposta do SUS, que se equipara, em grande medida, com os desafios impostos para sua efetivação, a carência de profissionais médicos pode ser percebida como um dos grandes gargalos no fortalecimento da APS no Brasil. É mister salientar, contudo, que destacar a carência de médicos atuantes no nível primário de atenção do SUS não significa solapar a gravidade de problemáticas orçamentárias e de infraestrutura que prejudicam o pleno funcionamento do sistema.

​No que diz respeito especificamente ao problema dos médicos atuantes na APS, é possível observar, desde a criação do SUS, um padrão na disponibilidade de tais profissionais que privilegia os grandes centros urbanos das regiões Sul e Sudeste, em detrimento das demais regiões brasileiras que, no caso do Norte e Nordeste, apresentam quadros crônicos de desabastecimento. Ao longo do processo de expansão do SUS e da abordagem em saúde primária contida na Estratégia Saúde da Família (ESF), é possível afirmar que a problemática da falta de médicos esteve presente em diversas políticas públicas conduzidas pelo Ministério da Saúde com vistas a fortalecer o SUS.

​Dentre tais políticas, é interessante destacar o Programa de Interiorização dos Profissionais de Saúde (2001) e o Programa de Valorização da Atenção Básica (2011). Enquanto o primeiro buscava abastecer municípios que ainda não haviam aderido plenamente à ESF com enfermeiros e médicos, o segundo buscou alocar médicos em municipalidades com graves distúrbios de provimento concedendo bonificações em provas de residência e especializações para os profissionais alocados, visando não apenas prover mão de obra médica, como também garantir a retenção dos mesmos.

​Ambos os programas, assim como medidas anteriores com os mesmos propósitos, não lograram o êxito esperado, lançando luz para a complexidade da questão na estruturação das ações municipais do SUS. Ao gargalo representado pelas disparidades de provimento e distribuição de médicos se soma a alta rotatividade de profissionais evidenciadas em tais programas, demonstrando a fragilidade das gestões municipais, especialmente em localidades isoladas e com elevados índices de pobreza, em garantir a retenção dos quadros médicos na APS.

Ao gargalo representado pelas disparidades de provimento e distribuição de médicos se soma a alta rotatividade de profissionais, demonstrando a fragilidade das gestões municipais, especialmente em localidades isoladas e com elevados índices de pobreza

O PROGRAMA MAIS MÉDICOS

Em 2013, durante o governo da ex-Presidente Dilma Rousseff, foi lançado o que seria o mais ambicioso projeto federal de fortalecimento do SUS, que abarcaria em três frentes os principais problemas da consolidação da saúde pública brasileira, quais sejam: precariedade de infraestrutura de instalações de saúde; pouca ênfase na qualificação em Medicina da Família nas bases curriculares de graduação e residência; e, por fim, oferta inadequada de profissionais de saúde na APS, problema somado à profunda disparidade de distribuição geográfica de médicos e alta rotatividade de postos de trabalho.

O programa, porém, ficou conhecido por meio de seu terceiro eixo, o Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB), que alocou nos quadros da APS brasileira considerável número de médicos cubanos. Desde o anúncio de seu lançamento, o PMMB enfrentou séria oposição de entidades da sociedade civil, especialmente os conselhos federal e regionais de medicina, além de parcela da sociedade civil que, insuflada por discursos ideológicos, concebiam o PMMB como uma forma do governo brasileiro financiar ditaduras e promover a expansão do comunismo no território nacional.

É necessário desmentir veiculações da imprensa e nas redes sociais a respeito das regras convocatórias dos médicos cubanos. Os termos legais que estabeleceram o projeto preconizavam uma ordem de prioridade clara na inscrição e convocação de participantes: teriam prioridade médicos brasileiros formados e com registro em território nacional, cujas vagas remanescentes seriam então destinadas a médicos brasileiros formados no exterior e então médicos estrangeiros.

É necessário desmentir veiculações da imprensa e nas redes sociais a respeito das regras convocatórias dos médicos cubanos

As primeiras chamadas do PMMB (entre 2013 e 2014) buscavam preencher pouco mais de 14 mil postos de trabalho, dos quais restaram, aproximadamente, 11 mil, direcionados, portanto, à alocação de médicos cooperados em parceria com a Organização Pan Americana de Saúde (OPAS). A escolha de Cuba se justificou tanto por sua proporção 1 médicos/mil habitantes, acima da média brasileira e da recomendada pela Organização Mundial de Saúde, como pelo seu extenso histórico de missões médicas internacionais, que já datavam dos anos posteriores à Revolução Cubana (1959), além de sua formação profissional médica direcionada para a Medicina da Família.

Os médicos cubanos não integram a terceira categoria, mas sim uma quarta: ao existir ainda vagas remanescentes após inscrição e convocação do terceiro grupo em ordem de prioridade, encontrava-se prevista em lei a celebração de acordos de cooperação para o preenchimento das vagas ociosas.

É preciso apontar o substrato falho de duas fake news amplamente disseminadas que equiparam o trabalho dos médicos cooperados à prática da escravidão e usurpação de função de médicos brasileiros. Os cooperados cubanos são servidores públicos cedidos por Cuba para realizarem missão médica no Brasil, o que justifica a retenção de parte de suas bolsas ao governo de Havana, prática esta que está embutida em todas as missões internacionais de Cuba, salvo aquelas humanitárias.

É preciso apontar o substrato falho de duas fake news amplamente disseminadas que equiparam o trabalho dos médicos cooperados à prática da escravidão e usurpação de função de médicos brasileiros.

Além disso, a alocação de médicos cooperados não implicou na demissão de médicos brasileiros da APS do SUS, pois os mesmos ocuparam apenas vagas ociosas. As eventuais destituições de médicos brasileiros se deram em virtude de irregularidades administrativas

Às veiculações falaciosas que contestam a qualificação e capacidade dos médicos cubanos em realizarem serviço adequado no SUS – comunicações estas que partem, inclusive, do presente governo federal – cabe a análise de sérios estudos2 realizados tanto pela OPAS como por instituições federais de ensino, que ao realizarem entrevistas com usuários do SUS atestam para o significativo contentamento dos mesmos, que, inclusive, adjetivam a prática dos cubanos como uma “abordagem mais humana”.

A PARAÍBA E O MAIS MÉDICOS

No Estado da Paraíba, ao se analisarem as razões médico/mil habitantes de 31 municipalidades entre os anos de 2010 e 2016, é notável o incremento positivo de mais de 50% em aproximadamente a metade dos casos, com cidades apresentando aumentos na oferta de médicos na ordem dos 200%. 173 dos 31 municípios analisados compõe, ao mesmo tempo, o perfil (4) de prioridade mais elevado do PMMB, além de possuírem Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) baixo.

Ainda que na grande maioria dos municípios o incremento de médicos não trouxe a razão médico/mil habitantes para valores acima de 1, é necessário não solapar os progressos obtidos, uma vez que a Paraíba integra uma das regiões com os piores “pontos de partida” em termos de precariedades de oferta e distribuição. É importante ainda notar que em tais municípios a problemática de oferta de médicos no período anterior ao PMMB ainda se combinava com a alta rotatividade dos profissionais, o que pode ser explicado pela fragilidade nas capacidades municipais de provimento.

No Estado da Paraíba, é notável o incremento positivo de mais de 50% em aproximadamente a metade dos casos, com cidades apresentando aumentos na oferta de médicos na ordem dos 200%

Observando o volume expressivo de médicos cooperados alocados pelo PMMB, especificamente a maneira com a qual tais profissionais reestruturam a geografia da distribuição em áreas com déficit crônico, é possível mesmo generalizar que a política, em si, existiu em razão da cooperação internacional.

Portanto, desmontar o PMMB em virtude da presença de médicos cubanos demonstra que as altas instâncias do governo federal desconhecem não apenas os trâmites legais que o fundamentam, como parecem subestimar a gravidade do cenário pré-PMMB e a possibilidade de retorno de condições crônicas de desabastecimento, resultando no cerceamento ao direito à saúde de parte expressiva da população.

Ao argumentar pelo fim do acordo de cooperação em virtude de considerações trabalhistas e ideológicas, é nítida a existência de uma contradição de discursos, uma vez que parece ser justamente uma preocupação calcada em uma ideologia especifica que faz com que o governo federal rechace a presença de médicos cubanos em solo brasileiro, lançando mão de uma obsoleta luta no combate à “expansão do comunismo”.

Em recente fala do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o ainda não lançado “Médicos pelo Brasil” é colocado como o provável sucessor do PMMB, cujas poucas informações divulgadas se baseiam na contratação por vínculo CLT de médicos para regiões prioritárias, além de possíveis concessões de bonificações por desempenho. O novo programa parece surgir como uma urgente resposta ao fracasso na alocação de médicos brasileiros nas vagas deixadas por médicos cooperados, o que pode servir de substrato para análises e opiniões que apontam para a falta de planejamento estratégico do poder federal ao lidar com a questão.

O PMMB representava uma interessante intercessão entre os campos das políticas públicas e da cooperação internacional, sendo referido pela OPAS como o maior projeto de cooperação em saúde das Américas, senão do mundo, cujo modus operandi poderia ser um importante instrumento de fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde de outros países em desenvolvimento. Ao encerrar o PMMB por considerações ideológicas e análises superficiais repletas de informações desencontradas, o governo federal não apenas sufocou o potencial de disseminação de novos modelos de cooperação em saúde pública, como parece lançar as bases para o aprofundamento da precarização do SUS.

O governo federal ainda retoma um antigo discurso amplamente disseminado às vésperas do lançamento do programa ainda em 2013, qual seja, a existência de um número adequado de médicos brasileiros aptos a ocuparem postos de trabalho no SUS, mas que não o fazem em virtude da ausência de incentivos, dentre os quais, financeiros. A falácia de tal argumento já foi explicitada nas tentativas infrutíferas de programas anteriores. Após comentários do governo de Jair Bolsonaro a respeito da qualificação dos médicos cubanos e de suas motivações, Cuba convocou seus funcionários ao retorno. A incapacidade do governo federal em preencher as vagas ociosas com médicos brasileiros demonstra que a experiência histórica em tal matéria continua a ser ignorada

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Imagem do livro “Mais Médicos”, de Araquém Alcântara.

O PMMB representava uma interessante intercessão entre os campos das políticas públicas e da cooperação internacional

Em recente fala do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o ainda não lançado “Médicos pelo Brasil” é colocado como o provável sucessor do PMMB, cujas poucas informações divulgadas se baseiam na contratação por vínculo CLT de médicos para regiões prioritárias, além de possíveis concessões de bonificações por desempenho. O novo programa parece surgir como uma urgente resposta ao fracasso na alocação de médicos brasileiros nas vagas deixadas por médicos cooperados, o que pode servir de substrato para análises e opiniões que apontam para a falta de planejamento estratégico do poder federal ao lidar com a questão.

O PMMB representava uma interessante intercessão entre os campos das políticas públicas e da cooperação internacional, sendo referido pela OPAS como o maior projeto de cooperação em saúde das Américas, senão do mundo, cujo modus operandi poderia ser um importante instrumento de fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde de outros países em desenvolvimento. Ao encerrar o PMMB por considerações ideológicas e análises superficiais repletas de informações desencontradas, o governo federal não apenas sufocou o potencial de disseminação de novos modelos de cooperação em saúde pública, como parece lançar as bases para o aprofundamento da precarização do SUS.

[1] Aproximadamente, 6,7 em dados de 2010. A média brasileira orbita em torno de 1,8, ao passo que a média recomendada pela OMS seria de, aproximadamente, 2,28. Essas razões dizem respeito à quantidade de médicos no território nacional em geral, e não à APS em especifico.

[2] Ver “Implementação do Programa Mais Médicos em Curitiba: experiências inovadoras e lições aprendidas” (OPAS, 2015)

[3] Aguiar, Alagoinha, Aroeiras, Cuité, Damião, Itapororoca, Juazeirinho, Manaíra, Mulungu, Pedra Lavrada, Pilar, Poço Dantas, Riachão, Santa Cecília, São José de Piranhas, São Sebastião do Umbuzeiro e Taperoá.

[4] Município com 20% (vinte por cento) ou mais da população vivendo em extrema pobreza.

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